CINEMA
Por
Carlos Emerenciano*
“(...)
Eu só peço que em vossas cartas, ao narrarem tais atos tristes e fatais, falem
de mim como eu sou. Que não diminuam nem usem de malícia na escrita. Falem de
um homem que sendo pouco sábio, amou muito; De um homem não ciumento, mas que
ao ser provocado, irou-se ao extremo; De um homem cuja mão, semelhante a do
hindu, enjeitou a pérola mais fina de toda sua tribo ...”. (tradução: Enéias Farias Tavares)
Após
se dirigir aos presentes, Otelo, tomado por um remorso insuportável, crava no
seu peito um punhal e tomba ao lado do corpo inerte de sua amada Desdêmona.
Diante da constatação de que matou uma inocente – a sua esposa não o traíra,
como lhe fizera pensar o malévolo e invejoso Iago -, não restou ao homem
desesperado outra alternativa.
A
dramaticidade presente em “Otelo” transformou a obra-prima em uma das peças de
Shakespeare mais cultuadas e encenadas em todo mundo (a que mais recebeu, por
exemplo, encenações na Broadway). Convertida em ópera pelo italiano Giuseppe
Verdi, no final do século XIX, a tragédia do genial dramaturgo também ganhou
vida no cinema. Entre os atores que levaram o personagem para a telona, destaco
Emil Jannings (1922), Orson Welles (1952) e Laurence Olivier (1965).
A
história universal e atemporal permitiu, ainda, a sua adaptação a outras
realidades, como se vê em “Jogo de intrigas” (O/ 2001). O cenário é o de uma
escola americana de ensino médio da atualidade e o “Otelo” (Odin), um jovem
negro que se destaca jogando basquete, o que lhe traz popularidade entre os
outros estudantes. Afinal, ciúme, inveja, ira, vingança, desespero são
sentimentos que acompanham a trajetória do ser humano desde sempre, comprovando
a sentença do “Eclesiastes” de que “não há nada de novo debaixo do sol”.
Imaginem,
portanto, caros leitores e leitoras, diante da intensidade do personagem
shakespeareano, como deve ser difícil, exaustivo e complexo, interpretá-lo.
Mais ainda: ao vivê-lo nos palcos, como apartá-lo de sua vida. Foi esse o
argumento utilizado pelos roteiristas de “Fatalidade” (A double life, 1947),
dirigido por George Cukor (“Núpcias de escândalo”/ The Philadelphia Story,
1940; “Minha bela dama”/ My fair lady, 1964). Um ator consagrado, Anthony John
(Ronald Colman), entrega-se de tal forma à interpretação de Otelo, que passa a
incorporar traços de sua personalidade ciumenta e doentia.
A
atuação do inglês nesse filme rendeu-lhe o Oscar de melhor ator de 1948.
Realmente, sente-se todo o drama do personagem, perdido entre duas identidades,
até o momento em que não distingue mais o que é real e ficção. Tanto nas cenas
de palco, em que interpreta o “Mouro de Veneza”; como fora dele, quando se
percebe, principalmente através de um perturbador olhar perdido, a loucura
batendo à porta; Ronald Colman impressiona.
Guardadas
as diferenças, principalmente quanto à época de realização dos filmes, o
conflito vivido por Anthony (Ronald Colman) assemelha-se muito ao de Nina
Sayers (Natalie Portman) em “Cisne Negro” (Black Swan, 2010). Ambos são
levados, pela entrega sem limites à arte de atuar, a vivenciar o trágico fim
dos personagens por eles interpretados no palco.
Eis
uma história que infelizmente se repete. Um homem, movido por ciúmes, levado a
matar uma mulher. Por dia, onze Desdêmonas são assassinadas no Brasil nessas
circunstâncias. Que a catarse provocada pela tragédia de Shakespeare nos
auxilie a refletir e enfrentar essa
realidade que teima em existir.
*Carlos Emerenciano - Apreciador de um bom filme, dividirá com os
leitores suas impressões sobre cinema todas as sextas-feiras.
Twitter: @cemerenciano
e-mail: aemerenciano@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário