O
monge alemão Heinrich Kramer, autor da obra, possuía o que se define hoje
como uma estrutura psicológica neurótica. Ele concentrou a misoginia de sua
época (século 17) num tratado para caça às bruxas.
Fonte: Deustche
Welle*
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O Martelo das bruxas, o livro |
Katharina
Henot foi a primeira vítima. Depois que, em 1627, a influente comerciante foi
condenada e executada por "magia maléfica", iniciou-se uma avalancha
de processos por bruxaria na cidade alemã de Colônia: nos três anos seguintes,
pelos menos 24 mulheres foram acusadas e mortas.
Cento
e quarenta anos antes, um monge dominicano estabelecera os fundamentos para
identificação e perseguição às feiticeiras, naquilo que hoje se chamaria um
best-seller: o Martelo das Bruxas – Malleus maleficarum ou Der Hexenhammer. O
tratado compilava o saber e os medos da época, fornecendo os argumentos
necessários àqueles que acreditavam na caça às bruxas.
Hoje,
o Conselho Municipal de Colônia se ocupa da reabilitação oficial de Katharina
Henot. A Deutsche Welle conversou com a historiadora Irene Franken, natural da
cidade renana, sobre um dos livros mais infames jamais publicados.
Deutsche
Welle: Em 1486, o monge dominicano Heinrich Kramer redigiu o Martelo das
Bruxas. O que ele contém exatamente?
Irene
Franken: Do ponto do vista do conteúdo, o Hexenhammer se compunha por três
partes. Primeiro explicava-se como identificar bruxas – ou melhor
"magas", pois a palavra "bruxa" [Hexe, em alemão] ainda não
era reconhecida e difundida de forma ampla. Na segunda parte do livro, Kramer
enumerava, através de histórias exemplares, o que essas supostas magas eram
capazes de fazer para prejudicar as pessoas. E, na terceira parte, explicava
como deviam transcorrer os processos contra essas mulheres malvadas.
DW:
Que processos eram esses?
IF: Os
processos da época mudaram de perfil, através desse livro. Até então, quem
denunciava alguém corria, ele mesmo, perigo de ir preso, até o processo ter-se
concluído. Com seu Martelo das Bruxas, Heinrich Kramer cuidou para que se
pudesse denunciar sem ser inculpado ou punido, caso as acusações fossem falsas.
Via
de regra, todo o esclarecimento do caso era entregue a juízes eruditos – ou por
vezes laicos – que então se encarregavam da busca por indícios. Não era
permitido nenhum tipo de assistência legal – como sabemos por um caso em
Colônia, onde uma comerciante tentou apelar para seu advogado. E as acusadas –
pois eram geralmente mulheres – se viam diante de um esquadrão masculino que
não hesitava a mandar despi-las, na procura por supostas marcas de bruxa, as
quais então serviam como indício para sua "natureza mágica".
DW
- O que se sabe sobre o monge Heinrich Kramer?
IF
- Ele fora designado pelo Papa como inquisidor no sul da Alemanha. De fontes
isoladas, sabemos que nem sempre foi bem sucedido em suas incursões a diversas
cidades, onde afixava uma nota ou cartaz à porta das igrejas, exigindo a
denúncia de todas as "magas". Em certos casos, ele chegou a ser
expulso sob pancadas. Parece ter sido uma espécie de ato de vingança, ele
iniciar essa campanha contra as mulheres, através do Martelo das Bruxas.
É
certo que esse livro não é o primeiro a focalizar tão fortemente nas mulheres a
temática da bruxaria, mas é o que faz isso da forma mais explícita e veemente.
O livro é também entremeado de máximas sexuais. Pode-se partir do princípio que
Kramer temia as mulheres.
Na
qualidade de monge, ele não conhecia quase nenhuma, pois entrara para o
mosteiro ainda criança. No Martelo há repetidas alusões a fazer desaparecer os
membros dos homens com um passe de mágica, a torná-los impotentes e coisas
semelhantes. Pode-se, portanto, deduzir que Heinrich Kramer possuía uma
estrutura fundamental neurótica.
DW
- A que público se dirigia o Martelo das Bruxas?
IF
- Ele é redigido em latim e, em princípio, se dirigia a especialistas,
sobretudo teólogos. Mas, aí, ele chegou também a muitos juristas e conselheiros
municipais, que o utilizaram para se informar sobre a matéria. Não é que antes
não existissem livros sobre o tema, mas Heinrich Kramer simplesmente compilou
suas teses a partir de inúmeros autores, de mais de 100 fontes, as quais ele,
em parte, menciona: são outros teólogos, mas também a Bíblia e livros de
direito da época.
DW
- Como o tratado foi divulgado?
IF -
O Martelo das Bruxas se beneficiou da invenção da imprensa, e do fato de ser
possível divulgar textos em tiragem bem alta. Certa vez tive um original na
mão: é um livro mínimo. Ao todo foram publicadas 29 edições. Ele não atingiu
apenas a Alemanha, mas foi empregado em toda a Europa. Contudo muitos países
também se distanciaram do livro, o rejeitaram. Como a Itália e a Espanha, por
exemplo – justamente aqueles que associamos com a Inquisição.
DW
- Até que ponto o Martelo instigou a caça às bruxas?
IF -
Não tanto quanto pensam algumas pessoas, hoje. O Martelo das Bruxas não
desencadeou imediatamente uma gigantesca avalancha de perseguição: mais correto
seria dizer que ele foi a reação a uma onda de perseguição no século 15. Mas a
maior onda de caça às bruxas na Europa só começou no século 17, quando o livro
já contava mais de um século. Ele ainda era relevante, mas também havia
alternativas, na época.
Não
se pode dizer que a obsessão com as feiticeiras tenha sido atiçada com força
extraordinária apenas pelo Hexenhammer. Porém ele forneceu uma base de
argumentação e, sobretudo, também uma certa segurança jurídica. De posse desse
livro, qualquer alcaide ou conselheiro podia se informar sobre a forma de
instituir um processo por bruxaria, e assim se sentia assegurado. Via de regra,
eram homens eruditos que liam esse livro. Clérigos o empregavam em seus sermões
e havia traduções para leigos, através das quais as ideias básicas do Martelo
eram mais amplamente difundidas.
DW
- Por que as teses do tratado encontraram solo tão fértil na época?
IF
- Eram tempos inseguros. Diversas coordenadas que vigoravam na Europa, até
então, haviam perdido a validade. Regiões inteiras estavam realmente na
miséria; ocorrera uma pequena Idade do Gelo no século 15; seguiu-se a Reforma
de Martinho Lutero, acarretando incertezas religiosas; em parte reinava o medo.
Nesse contexto, o Martelo das Bruxas oferecia orientação e segurança. Através
dele, parecia possível identificar quem não levava a fé cristã a sério – pois a
magia também era interpretada como renegação da fé cristã.
DW
- Mas foi justamente o Martelo que permitiu que se denunciasse qualquer pessoa,
a qualquer momento. Isso não tornou a situação ainda mais tensa e insegura?
IF -
O livro contribuiu, acima de tudo, para que se aprofundasse a concepção sobre
as mulheres, já existente. Não era um pensar novo. Antes disso, as mulheres já
eram apresentadas como o elemento ruim e fraco da sociedade. Mas o Martelo das
Bruxas reforçou essa visão. Ele cuidou para que gente que, de alguma forma, era
diferente da maioria, fosse mais rapidamente perseguida. A sociedade hegemônica
assegurou seus próprios valores ao eliminar os marginais, como diríamos hoje.
DW
- Não havia realmente qualquer possibilidade de escapar a uma persecução?
IF
- Era muito difícil. Uma vez que a acusação de bruxaria era lançada, só restava
ao implicado torcer para que o juiz encarregado possuísse uma boa formação.
Quanto mais erudito e culto o juiz, mais brandas eram as sentenças
pronunciadas. Pode-se constatar isso na comparação entre as grandes cidades e
os povoados, nos quais a decisão cabia a juízes laicos: em geral, estes impunham
sentenças bem mais rigorosas.
Quando
uma mulher ia às barras do tribunal, ainda era possível os conselheiros,
encarregados de decidir sobre a realização do processo, sustarem a ação. Nesses
casos, eles eventualmente expulsavam a acusada da cidade, ou decretavam prisão
domiciliar, ou a liberavam inteiramente. Uma mulher acusada de feitiçaria, na
época, não era automaticamente condenada à morte. Mas, a rigor, havia bem pouco
que ela mesma pudesse fazer.
Por Laura
Döing (av), revisão de Roselaine Wandscheer
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