“COISAS
DA VIDA”
Por
Leide Franco* (@LeideFranco)
Era
sábado pela manhã, um dia de verão dos mais quentes, dia bom para limpar superfícies
encobertas pela poeira e pela ação do tempo que traz partículas pouco visíveis
e ácaros oportunistas que vemos circular sempre que uma fresta incide luz,
focando algum pedaço do ambiente. Dias de sábado são dias de purificação. Dia de
soprar o pó que acumulou nos dias anteriores. Sábado é dia abrir as janelas,
deixar o sol entrar em seu máximo e fazer o mofo acumulado se dissipar. É dia
de deixar o ar limpo entrar, circular por nossas vias, encher o peito e renovar
as forças. Sábado é dia de abrir espaço para a semana renascer.
Renascer
vem do consequente fato de morrer. Morte é uma coisa que não combina com nada
na vida, nem tampouco com sábados. Não tenho coragem nem de matar uma mosca,
mas matei uma pobre e indefesa mosca doméstica, como se eu fosse uma divindade
dotada de poderes que determina a hora do fim. Logo uma mosca que só dura,
quando muito, míseros trinta dias. Logo uma mosca que de tão sábia se recusa a
morrer por já durar tão pouco. Mosca é aquele ser inseto que mede a velocidade
e o ângulo da mão de quem nela bate, mas não só a mão, pode ser o chinelo ou
aquele jornal que é arremessado em direção do seu corpo pequeno e frágil, e
assim, ela calcula minuciosamente, como alguém que estuda física a vida
inteira, onde será o golpe dado a fim de acabar com a sua já curta vida. Toda essa
estratégia de fuga da morte ela rapidamente monta em três segundos.
Morrer
por sucção não deve ser uma morte tranquila. Eu matei uma mosca. E não foi
aquela mosca que queria entrar no meu olho ou no meu nariz. Também não foi
aquela mosca que por mais que a gente espante, está sempre de volta, como
aquele teimoso que nunca se vai. Eu matei uma mosca com o barulhento aspirador
que consumia o pó do sofá da sala naquele sábado. O aspirador veloz agiu muito
antes dos três segundos que a mosca precisaria para escapar da força do
mecanismo que o aspirador de pó utiliza. Eu, meio deus munida de uma arma de
aspirar partículas e vidas nas mãos, juntos, fomos cruéis e impiedosos.
Poucas
coisas justificam a morte. Poucos perdoam os que matam. Defendo-me argumentando
que tentei desviar o jato que suga poeira daquele corpo quase inerte, mosca que
estava em pouso, quieta, bem visível na parte branca do sofá de tecido; ali ela
estava, sem pretensões, sem pressa, só dando tempo ao seu breve tempo. Não tive
a intenção, foi um desvio, de repente dirigi o ar que suga sujeiras para aquela
parte do sofá, e em milésimos de segundos pude ver que ela ainda tentou lutar
contra aquela força que lhe puxava para o encontro de um mundo desconhecido.
Ela foi valente, eu vi! Esforçou-se para correr do ímã que a atraia para dentro
daquele aparelho que só deveria aspirar pó e coisas semi-invisíveis. Ela queria
fugir, como quem foge de um redemoinho ou do furacão em vão. Ela tentou
escapar, eu juro que vi! Mas eu e aquele aspirador de pó fomos mortalmente mais
rápidos.
Quem
pode ter o direito de tirar a vida de algo tão desavisado, em seu estado de
vida que não era para acabar naquele instante? Eu fui aquela que pôs fim na
vida de alguém, alguém mosca, indefesa e minúscula, sem fazer mal a nada e nem
a ninguém. A expressão ‘incapaz de matar uma mosca’ não será válida sempre que
em minhas mãos estiver um aspirador de pó ensurdecedor ligado na tomada a 220
Volts. Eu, assassina, não escolhi matar; ela, impotente não escolheu morrer. No
fim, restou o que posso chamar de corpo sem vida de uma mosca no saco de restos
mortais do aspirador de corpos estranhos e moscas que pousam distraídas - e
suicidas. Continuo incapaz de matar uma mosca, mas matei.
*Leide
Franco - Comunicadora com pretensões literárias;
Um
pouco de filosofia e reflexões cotidianas;
Um
muito de MPB
E
quase nada do que ainda quero ser.
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