As
memórias do escritor e médico reumatologista mineiro Pedro Nava (1903-1984),
que começaram a ser escritas em 1968, quando o autor tinha 65 anos, serão
relançadas em março pela editora Companhia das Letras - o primeiro e segundo
volumes, Baú de Ossos e Balão Cativo, respectivamente, chegam às livrarias dia
2.
Fonte:
Estado de São Paulo
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Livros serão lançados pela Companhia das letras |
Nessas
Memórias, que ocupam sete volumes, Nava revela: não foi só o Visconde de
Barbacena (com Genealogia da Família Mineira) seu único modelo e inspiração,
mas especialmente o escritor francês Marcel Proust (1871-1922). Todo mundo tem
sua madeleine, escreve Nava em Baú de Ossos. A sua, citada no volume seguinte,
Balão Cativo, tinha uma casca ardida, vermelha, e uma polpa branca que resistia
ao dente. O sabor cru, de terra, dos rabanetes da infância do mineiro, o
perfume do sumo de laranja e o cheiro das moringas novas compõem o cenário
proustiano de suas memórias frankensteinianas.
O
professor e crítico Davi Arrigucci Jr., autor do posfácio da edição de Baú de
Ossos, chama a atenção justamente para o caráter cubista, fragmentário, dessas
memórias - até involuntárias - que ergueram um monumento literário no Brasil na
linha da obra máxima de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Arrigucci, no
entanto, prefere associá-lo a dois clássicos da literatura brasileira -
Casa-Grande & Senzala e O Ateneu -, mostrando como essas Memórias iluminam
o passado histórico brasileiro a partir de uma autobiografia que é, antes de
tudo, uma “meditação sobre a morte” - tão forte quanto a lírica de Manuel
Bandeira, segundo o crítico. “Cada um compõe o Frankenstein hereditário com
pedaços dos seus mortos”, escreve Nava em Baú de Ossos, para em seguida assumir
com o leitor o compromisso de “dizer a verdade, só a verdade e, se possível,
toda a verdade”.
Toda
verdade não foi possível. O sétimo volume, Cera das Almas (póstumo e
incompleto), estava a caminho quando Nava recebeu um telefonema, no dia 13 de
maio de 1984. Saiu de casa e, por volta da meia-noite, seu corpo foi encontrado
numa praça do bairro da Glória, no Rio, onde morou metade de sua vida. Aos 80
anos, com um tiro na cabeça, o escritor se matou. A tragédia é comentada no livro
Minha História dos Outros, do jornalista Zuenir Ventura. Na época, chefe da
sucursal carioca da revista IstoÉ, ele convocou dois repórteres para investigar
o caso e localizar um garoto de programa que estaria por trás da ligação
misteriosa.
A
história foi abafada. O próprio Zuenir escolheu não publicar a versão do
prostituto, que teria chantageado Nava. Se a ameaça de um linchamento moral por
causa de um garoto de programa foi a causa do suicídio, é impossível saber. O
fato é que, em suas memórias, não há lugar para uma discussão direta sobre o
tema homossexualidade, embora cite escritores reconhecidamente homossexuais,
como Cocteau, Gide, Radiguet e Proust. O escritor evoca o último na página 341
de Baú de Ossos para atestar que nossa memória não passa de um reflexo em que a
ordem dos fragmentos aparece invertida. Inconsolável, ele recorda, em Balão
Cativo, o amigo americano Moses Spector, que conheceu no Ginásio Anglo-Mineiro,
em 1914, e nunca esqueceu. O garoto voltou para os EUA e, mesmo passados 53 anos,
Nava ainda mantinha viva na memória a visão de seu “cabelo arrepiado”, das
sardas, dos olhos e da “boca cheia de língua”, ao passar pela ponte de
Brooklyn, em 1967, e lembrar-se até do endereço e número da casa do amigo.
As
Memórias de Pedro Nava não contam, contudo, apenas a história da educação
sentimental e moral do escritor. Arrigucci tem razão ao comparar sua obra ao
clássico Casa-Grande & Senzala, do pernambucano Gilberto Freyre, porque, ao
falar da própria família, Nava traça um retrato implacável da burguesia
brasileira dos séculos 19 e 20, escancarando os bastidores políticos da
história do Brasil e dos costumes nas casas-grandes mineiras e nordestinas (um
ramo da família é cearense). Impressiona a exposição do passado familiar por
Nava, que traz à tona, entre outros personagens, um bandido traficante de
escravos, violento, vulgar e blasfemo, cuja história, desvendada por um
parente, humilhou a avó. Nava jura que não citou o “celerado” ancestral por
cinismo, mas por acreditar que toda família tem uma ovelha negra como “elemento
de estabilidade” do núcleo.
Certo
é que o escritor acreditava em valores transmitidos pelo DNA. “Ninguém pode
compreender nada da história social e política de Minas se não entender um
pouco de genealogia”, escreve em Baú de Ossos. Na página 211 do livro, ele
resume essa crença numa frase: “Bon sang ne peut mentir” (Sangue bom não
mente). E Nava descendia do bandeirante Fernão Dias Paes, que mandou enforcar o
próprio filho. “Bandoleiros para os outros, heróis para a família”, justifica o
escritor, pedindo aos primos que não se zanguem com a revelação. De Portugal,
conclui ele, duas páginas depois, “nos ficou o preconceito contra tudo o que
cheira a mouro”. A avó de Nava, Inhá Luísa, que tinha “uma autoridade
imanente”, só faz confirmar o neto, por quem nutria o mais absoluto desprezo.
Ela não gostava de negros e virou a mão na boca da empregada Justina por deixar
entrar em sua casa a mucama da vizinha, dona Maricota Ferreira e Costa. Com a
boca sangrando, Justina, para espanto de Nava, cantou. E nunca mais foi vista.
O episódio é contado em Balão Cativo.
A
honestidade de Nava é inquestionável, mas não se trata apenas de memorialismo.
Os mais fascinantes memorialistas, escreveu Paulo Mendes Campos em 1981 (texto
reproduzido em Balão Cativo), são pessoas “que não têm muita coisa para
contar”. O que teria um menino de Minas “de sala de visita e quintal, inundado
de saias familiares e óculos de adultos engonçados, um estudante irrequieto,
médico aplicado e poeta bissexto a contar?”, pergunta o jornalista mineiro,
para responder ele próprio que foi exatamente nesse material biográfico
“ressequido e sem graça” que Nava encontrou “o seu além da toca do coelho”.
Como Alice.
O
professor de Literatura Massaud Moisés compara o novo capítulo que Nava
escreveu na história do memorialismo brasileiro a uma “revolução copérnica,
equivalente à que Guimarães Rosa empreendeu no terreno da ficção”. Essa
revolução, segundo o professor de Literatura da Unicamp, Antonio Arnoni Prado,
diz respeito não só à técnica do autor - “que converte o passado numa espécie
de metáfora inacabada das sensações que refundam a experiência do
sujeito-que-recorda, como se recriasse o mundo à maneira do grande romance do
século 19”. Arnoni Prado destaca ainda a “voracidade heurística” do narrador
criado por Nava, “que rearticula a dicção harpejada das vozes que se colam ao
estilo livre das citações, das transcrições, da reduplicação documental, dos
testemunhos da história e da imaginação”.
Talvez
seja conveniente lembrar que o primeiro volume das Memórias de Nava saiu no
período mais conturbado da ditadura militar (1972). É mesmo um documento e
tanto - não exatamente sobre o regime, mas sobre a herança de um país
suscetível a golpes de gente autoritária. “Também tivemos a nossa belle époque,
por sinal que feia como sete dias de chuva”, escreve em Baú de Ossos. Com a
República começou, segundo ele, a decadência política e estética. Trocaram-se
as gravuras imperiais de Debret e Rugendas pelas pinturas “sebentas” de Giuseppe
Boscagli - “representando marechais anacrônicos em fardas do tempo da Guerra da
Crimeia”. E Nava segue adiante, espinafrando o despudor do marechal Floriano,
dos caciques, dos coronelões, da tradicional família mineira, dos parentes e
dos contraparentes. Mesmo ele não escapava dessa decadência - Nava começa o
livro parafraseando Eça de Queirós, ao dizer que é um “pobre homem do Caminho
Novo das Minas dos Matos Gerais”. Ao longo dos sete livros sua figura vai se
apagando como uma vela de defunto, preparando-se para entrar na eternidade nas
36 páginas do inacabado Cera das Almas, sétimo e último volume de suas
Memórias.
Ele
pensara em suicídio anos antes. Numa carta dirigida ao amigo Carlos Drummond de
Andrade, em 1975, nove antes de morrer, Nava recomendou que seu cadáver fosse
embalsamado com dois litros de formol. Essa fixação em morte e suicídio fica
mais clara em O Círio Perfeito: nele, Nava derrama quatro gotas de sangue (na
página 280 do texto original) e parece à beira de uma revelação que, afinal,
resolve não oferecer ao leitor. Já então deprimido pelas reações negativas de
seus familiares aos fatos descritos em suas Memórias, usa o último recurso de
criar um alter ego para a revelação derradeira, que viria em Cera das Almas,
segundo a biógrafa do autor, Monique Le Moing.
Em
A Solidão Povoada (Editora Nova Fronteira, 1996), ela fala dos sinais evidentes
de sua tragédia anunciada ao se referir ao personagem do Comendador que,
prestes a anunciar uma notícia bombástica, interrompe sua fala e não revela o
desfecho - que ficaria para o último volume. Sua ligação extemporânea com o
decadentismo, segundo o professor Arnoni Prado, poderia eventualmente explicar
muito desse mistério. Ver amigos mortos sentados à mesa ou a própria morte
penetrando seu corpo, sugere o professor, deixaria Nava muito à vontade na
tradição do dark Gastão Cruls, amigo de sua prima Rachel de Queiroz. Também um
médico e bom escritor, nunca é demais lembrar.
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