É
possível, 90 anos depois, exaltar um movimento que criticava a apologia ao
passado sem ferir a sua proposta? Segundo o doutor em letras e literatura
Marcelo Bulhões, para não correr o risco de contrariar o espírito da Semana de
Arte Moderna de 1922, a melhor homenagem é não “mumificá-la”, nem reverenciá-la
como um monumento grandioso.
Portal
Vermelho, por Joana Rozowykwiat
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Programa da Semana de Arte Moderna publicado no jornal |
Os
contestadores artistas que mostraram seu trabalho nos salões do Teatro
Municipal de São Paulo pregavam a ruptura com velho e condenavam a apologia ao
que era passado, estabelecido e tradicional. Hoje, tornaram-se eles mesmos
verdadeiros “clássicos” brasileiros.
“Eles eram contra esta atitude de
exaltação, de glorificação vazia, essa apologia passadista. O que é hoje, 90
anos depois, comemorar a Semana de 1922? Será que transformar a Semana num
monumento, num mausoléu ou numa estátua de bronze não vai exatamente contra o
que eles se insurgiram?”, questiona Bulhões, professor da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), em conversa com a reportagem do Vermelho.
De
acordo com ele, fazer da Semana de Arte Moderna um tema para um “elogio pomposo
e retórico” – sem perceber as contradições e impasses que a marcaram – é
cometer um “equívoco de base”, um verdadeiro contrassenso. “A melhor homenagem
a 22 é não fazer reverências e pensar se é possível, ainda, ter um permanente
espírito de pesquisa, transformação, revisão, transgressão e não repetição”,
avalia.
Neste
aniversário do evento que foi um marco do modernismo brasileiro, o Vermelho
publica abaixo tópicos da conversa com Marcelo Bulhões.
O
cenário
“A
Semana de 22 foi patrocinada pelo capital da elite paulista - a oligarquia
cafeeira e a força industrial -, para marcar o centenário da independência do
país, num momento em que São Paulo buscava se afirmar no cenário nacional. Já
era a cidade que mais crescia. Busca marcar, portanto, uma espécie de hegemonia
cultural em relação ao país.
Ao
mesmo tempo, a Semana de 22, é um ponto de chegada de alguns movimentos e ações
de intelectuais e artistas que já se davam antes da década de 20. São Paulo já
era - guardados os limites da vida cultural brasileira – um centro, onde havia
exposições, uma vida cultural artística muito agitada. E uma atividade
econômica ligada à difusão de arte”.
Playboys
modernos e as contradições de 22
“Quem
vai fazer a Semana de 22 são jovens que vivem no circuito da elite paulistana.
Mesmo que alguns não fossem financeiramente privilegiados, eles eram os
playboys da década de 20. Tinham formação europeia, viajam muito, falavam mais
de uma língua.
A
Semana de 22 guarda, então, uma contradição que se distribui em algumas
dicotomias. Do ponto de vista institucional, queria romper com o passado e se
proclama revolucionária, mas era bancada pelo mecenato industrial oligárquico.
Do
ponto de vista artístico, era um evento multimídia que combatia o
tradicionalismo nas artes, mas que tinha figuras que transitavam pelas artes do
passado. (O escritor) Menotti Del Picchia, por exemplo, era um figurão que não
era avesso ao contato com intelectuais que eram chamados de passadistas.
Oswald
(de Andrade), um dos maiores líderes do movimento - do ponto de vista da sua
atitude propagandística e polemista de 22, de grande provocador-, tinha contato
com poetas que seriam combatidos pela semana de 22, como o Olavo Bilac.
Então
são jovens, playboys, que participam da elite, têm trânsito com o passadismo e
que vão querer fazer a revolução, ou uma atualização do Brasil com o que tinha
ocorrido na Europa já fazia praticamente vinte anos. Eles reivindicam a
correção desse atraso.
Outra
contradição fundamental é entre a afirmação do espírito nacional e a importação
do vanguardismo estrangeiro. Afinal, é uma semana que se busca brasileira”.
Futurismo,
integralismo e antropofagia
“Nós
não temos um só modernismo. O grupo (que organiza o evento) não é tão coeso
assim. E, depois da Semana , essas diferenças vão de manifestar. É possível
falar então em três vertentes do modernismo.
Há
uma corrente mais futurista, que tinha a ideia de atualizar o Brasil com o
compasso dos avanços tecnológicos – colocar a arte no patamar da velocidade da
máquina, da técnica, do progresso -, muito inspirada no (poeta italiano
Filippo) Marinetti. Muitos transitam por aí, principalmente Graça Aranha e
Menotti Del Picchia.
Uma
outra corrente é muito nacionalista - no sentido fascista do termo -, de um
nacionalismo conservador, à direita. Há quem diga que era uma falsa vanguarda,
reacionária. Era encabeçada pelas figuras do Cassiano Ribeiro e Plínio Salgado,
líder do integralismo, que era a versão fascista brasileira.
E
há a vertente oposta a essa, que era a antropofágica, liderada por Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp. Essa vertente foi a
que cujos frutos foram os mais importantes no desenvolvimento da cultura
brasileira no período posterior. Foi a que melhor deu resposta a esses
impasses, principalmente à questão de como ser uma vanguarda que se inspira na
Europa e, ao mesmo tempo, diz que é importante romper o laço com a Europa”.
Deglutir
“A
cultura brasileira tinha vivido até então o seguinte impasse: imitar tudo que
vem de fora ou, ao contrário, se fechar a tudo que vem de fora. Imitar ou ser
xenófobo. As culturas americanas, de forma geral, já são culturas de
transplante. A condição da colonização já nos traz a inevitável situação de
absorção da cultura europeia. Diante disso, o que fazer?
Oswald
de Andrade fala então em fazer nem uma coisa nem outra. Ou seja, pegar o
elemento exterior e ter uma atitude ativa em relação a ele, transformá-lo. É
aquilo que o (crítico) Antônio Cândido chama de a dialética do local e do
cosmopolita”
Legado
“As
conseqüências disso (antropofagia) são imensas para a cultura brasileira. Boa
parte das coisas boas que seriam feitas depois teve como primeiro momento de
consciência isto daí. Oswald de Andrade brincava com as palavras, dizia que,
‘no futuro, a massa vai comer os biscoitos finos que eu fabrico’. Ele foi um
profeta de certa forma, porque o movimento concretista, a tropicália, o Teatro
Oficina, a própria bossa nova serão, nesse sentido, desdobramentos - mais ou
menos conscientes - do espírito de 22”.
Faxina
na língua portuguesa
“Ressalvados
alguns equívocos, suas contradições e limites, 22 traz como grade legado o fato
de que a Semana representa a defesa de uma escrita que se aproxime da linguagem
oral. Faz uma espécie de faxina na língua portuguesa falada aqui.
O
Brasil foi marcado, durante o processo colonial, por uma cultura oral, e a vida
intelectual não se dava senão pelo ambientes do púlpito – o palanque político,
jurídico – ou pelo ambiente religioso. Então o Brasil adquiriu uma expressão
oral muito retórica, no mal sentido – o falar difícil, empolado.
O
modernismo foi muito contrário a isso. Deu uma paulada na linguagem rebuscada
como forma de poder, nessa escrita fossilizada. E agiu contra toda essa atitude
de exaltação, de glorificação vazia, essa apologia passadista. E, principalmente,
contra os escritores associados a essa linguagem rebuscada, em que inteligência
e criatidade literária eram sinônimos de falar difícil. Criticaram grande
pilares, como Olavo Bilac e Ruy Barbosa”.
Mitos
caíram
“Houve
um tempo em que a Semana de 22 foi muito exaltada, dizia-se que foi a partir de
22 que tudo começou (para a cultura brasileira), que foi uma revolução, uma
espécie de marco zero. Mas também houve uma outra tendência de desvalorização
máxima. (Pessoas que diziam que) a semana foi uma inconseqüência juvenil, de
porra-loucas que não sabiam o que queriam. Hoje, os ponteiros dessa balança
estão mais equilibrados.
Claro
que a semana foi muito importante, mas não foi um marco zero. Alguns mitos
caíram, como, por exemplo, dizer que São Paulo era tudo de modernidade e o Rio
de Janeira era tudo de passadista. A Semana aconteceu em São Paulo, porque a
cidade era a vanguarda industrial da década de 20; enquanto o Rio era ligado à
Academia Brasileira de Letras, ao capital do Império, ao capital da República.
Mas a coisa não era bem assim. Tanto que dois cariocas de altíssimo peso vêm
para a Semana de Arte - Di Cavalcanti e Villa-Lobos.
Outra
coisa que foi sendo atenuada foi a visão de que tudo que veio antes era
ultrapassado, que 22 foi uma coisa que não teve precedentes que já apontavam
para uma modernização”.
Nacionalismo
em tempos de globalização
“Sem
dúvida, o dilema cosmopolitismo versus nacionalismo não existe mais. Até a
década de 1960, isso existia. Mas, em 2012, essa pauta caiu. Com o advento de
uma sociedade internacionalizada, com internet, com esse trânsito
comunicacional irreprimível, esses dilemas se dissolveram.
Por
outro lado, curiosamente, aquilo que se chama globalização, esse novo cenário,
não representou o esvaziamento e a dissolução de manifestações regionais, da
cultura popular - o que torna tudo muito mais complexo. A mundialização da
comunicação até nos permitiu conhecer mais culturas locais. Embora essas
culturas locais não sejam algo estático. Elas se transformam. Um exemplo disso
é o manguebeat, que pegou o coco, a embolada, o maracatu, mas relacionou isso
com o rock, o hip rock.
Existem
várias dobras culturais nesse mundo globalizado que indicam que não houve uma
pasteurização (das culturas). Houve um trânsito. E a pauta local-internacional
caducou. Nenhuma cultura fica inerte, senão vira museu”.
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