Passaram-se
já 15 anos da primeira edição do Fórum Mundial da Água e 20 da Declaração do
Rio. Durante esses anos, o Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como
Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais
desenvolveram uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está
fundamentada no conceito de que água é um bem mercantil necessário para a vida
e a ecologia, funcionais aos direitos humanos e à sobrevivência e,
portanto...um grande negócio.
Por
Elizabeth Peredo Beltrán* - Fonte: AlaiNet / Tradução: Carta Maior
Em
todo esse período, ao invés de melhorar o cuidado com as fontes e aquíferos em
todo o mundo a situação piorou substancialmente. Os equilíbrios ecológicos
necessários para a sobrevivência e a fluidez do ciclo hidrológico foram
rompidos como nunca havia acontecido, devido aos processos de agroindústria em
larga escala, contaminação mineradora e projetos de energia baseados na
construção de enormes hidroelétricas, entre outras causas. As empresas, por sua
vez, estão buscando cada vez ganhar mais terreno da gestão pública e seguem
ocorrendo debates entre gestores públicos e empresários diplomáticos corporativistas
que tentam nos convencer de que o papel do setor privado é absolutamente
necessário para a gestão da água.
Nestes
debates e acordos de governança global da água pretende-se deslegitimar a
gestão pública e fortalecer o conceito que foi desenvolvido pelo Consenso de
Washington: o desenvolvimento e o cumprimento dos objetivos do Milênio só serão
possíveis se existir um forte investimento privado; portanto, o
desenvolvimento, os direitos humanos e os equilíbrios ecológicos estão ligados
à sorte do mercado.
Este
princípio permitiu construir um sistema especulativo de alto voo que agora é
reforçado com o desenvolvimento da economia verde que é mais do mesmo, mas
concebido para criar mercados especulativos coloridos com uma tinta verde
acrescentada para dar a sensação de que se está protegendo o planeta e com a
intenção de mercantilizá-lo todo; não só a água que tomamos e até o ar que
respiramos, mas inclusive o futuro do planeta. Ainda que pareça ficção
científica, isso é possível assim como foi possível que desde este Fórum tenham
surgido soluções técnicas e corporativas escandalosas há alguns anos e que
agora estão sendo colocadas em prática.
Em
Haia, o Fórum Mundial da Água de 2003 se propôs incentivar a criação de
sementes transgênicas para “poupar água”, sob o diagnóstico de que a
agricultura é a atividade que consome mais água em todo o mundo. Na época, os
ativistas da água reclamaram que esta solução podia se constituir em um crime
que poderia afetar a saúde de todo o mundo e lançaram campanhas para evitar as
sementes transgênicas e incluir o princípio de precaução nestas tecnologias.
Hoje, as sementes transgênicas são parte do comércio mundial de alimentos e
suas tecnologias e insumos. Nesta semana a Argentina apresentou ao mundo com
orgulho o patenteamento de uma nova semente transgênica capaz de “poupar” água
na produção de trigo, milho e soja em nível mundial.
As
coisas vão mal porque deixaram as decisões mais importantes sobre a vida e
sobre o planeta nas mãos das corporações e de governos poderosos e
desenvolvimentistas que, baseados no princípio de que tudo se compra, se paga,
se vende ou se repara pagando, levaram até os limites a impossibilidade de
construir uma sociedade solidária, protetora do meio ambiente e, sobretudo,
respeitosa de um bem sagrado para a vida como é a água.
O
Fórum Mundial da Água se negou sistematicamente a apoiar em suas declarações o
Direito Humano à Água e ao Saneamento. No Fórum Mundial da Água do México, em
2006, foram apenas quatro os países que assinaram uma declaração minoritária
exigindo o direito humano à água, entre eles Uruguai e Bolívia. No entanto, nas
Nações Unidas, há dois anos não houve nem um só voto contra a Resolução 64/292
declarando o Direito Humano à Água e ao Saneamento. Os países que se opunham a
ela só puderam se abster de votar, mas não explicitar sua negativa a um
evidente consenso gerado pelos povos e pelos países que sabem que esse é um
direito inalienável para a humanidade.
Como
é possível que, sistematicamente, o FMA se negue a reconhecer esse direito e
que, na ONU, ele tenha sido aprovado sem oposição há dois anos?
Sendo
que são os mesmos países que fazem parte das declarações ministeriais, por um
lado, e das resoluções e conferências, por outro. Por que é que agora que
ocorreu esse passo tão importante na ONU, o FMA não avança, mas, ao contrário,
busca retroceder e diminuir as possibilidades de implementação do direito
humano à água, favorecendo os processos de privatização? Mais do que isso,
agora o FMA está decididamente disposto a incluir a água em “todas as suas
dimensões econômicas, sociais e ambientais em um marco de governança,
financiamento e cooperação”...como afirma sua declaração emitida ontem, apesar
do protesto de alguns países.
Enquanto
isso, milhares, senão milhões de experiências e iniciativas de gestão social e
solidária, experiências exitosas de gestão pública, são implementadas com base
no conceito de que água é um bem comum, um bem não mercantil para a vida.
As
políticas e visões promovidas pelo Fórum Mundial da Água não estão à
altura
dos desafios colocados diante do planeta e da humanidade. Pelo contrário, estão
condenando a gestão da água a seu manejo pelos poderes corporativos incapazes
de priorizar a vida, preocupados mais em extrair lucros de qualquer parte, por
sistemas financeiros, especulativos e sistemas de litígios corporativos
cobiçados nas instituições financeiras internacionais.
Considerando
o extremo esgotamento dos recursos e o desequilíbrio ecológico produzido no
planeta é indispensável que a governabilidade da água fique fora das mãos do
Conselho Mundial da Água e seja construída a partir de consensos dos cidadãos,
dos povos e do interesse público. É por isso que os movimentos sociais reunidos
em Marselha estão propondo que a ONU convoque um Fórum Global da Água que
possibilite escutar as vozes das pessoas para pensar a água como um bem para a
vida. As organizações sociais estão pedindo que sejam reforçados os sistemas
locais e que se contribua para um exercício de vigilância social para assegurar
que seu manejo seja social, democrático e solidário.
Diz-se,
não sem razão que “milhares viveram sem amor, mas ninguém viveu sem água”
(Auden). Nós acrescentamos, a partir deste Fórum, “sem amor, empatia e
solidariedade, será impossível assegurar que a água chegue limpa e pura para
todos”.
(*)
psicóloga social, escritora e ativista pela água, cultura e contra o racismo.
Escrito para o Fórum Alternativo Mundial da Água, Marselha, 2012.
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