Por
Walter Medeiros*
Último
dia do ano de 1999. Uma jovem repórter percorre os arredores da Torre de TV de
Brasília. Olhar atento, ela observa cada pessoa, dos turistas aos hippyes,
principalmente olhando para os seus braços esquerdos e mãos direitas. Procurava
alguém que tivesse um cordão amarrado no braço esquerdo e uma Bíblia na mão
direita. Aproximava-se da meia-noite. Em menos de uma hora chegaria o ano 2000,
que tanto trabalho deu para entenderem tratar-se do último ano do Século XX e
não o início do novo século. Ela procurava não dar na vista, mas olhava para todos
que encontrava, preocupada em não deixar de enxergar ninguém. Se aquela pessoa
que procurava estivesse no local ela não poderia deixar de localizá-la.
O
frio era grande, mas ela era acostumada com aquelas temperaturas do cerrado e
sempre saía de casa com o agasalho certo; não teria nenhum problema. Não tinha
perigo de deixar de ver a pessoa que procurava, se ela estivesse no local, pois
ela conhecia cada canto da torre. Estava acostumada a fazer reportagens e
visitas ao local, às vezes até para almoçar no seu restaurante. Ou mesmo para
levar amigos de outros estados a fazerem compras na tradicional feirinha do
local. Havia uma ansiedade muito grande, pois o encontro com aquela pessoa
poderia ser emocionante. Ela queria saber aonde e como teria sido a vida da
outra pessoa nos últimos 26 anos.
A
ansiedade aumentava na medida em que aproximava-se da meia-noite. Seria a
passagem do ano e início do reveillon de Brasília. Através de um pequeno
televisor a pilha, ela vira de relance festejos da chegada do ano em outras
partes do mundo. Na solidão de sua missão jornalística, via a beleza dos fogos
de artifício iluminando o céu da sua amada cidade. Correu do seu rosto uma
lágrima. Era a emoção da chegada do ano 2000, a frustração por não ter
encontrado a pessoa que esperava e o calor anônimo das pessoas que a
cumprimentavam e desejavam “Feliz Ano Novo!” e “Feliz Ano 2000!”. Não encontrou
o homem do cordão no braço e a Bíblia na mão. Mesmo assim aproveitou aquele
ambiente que viu e juntou dados para uma matéria, na qual contaria o que tinha
ido fazer na Torre de TV naquela hora e revelaria para seus leitores tudo que
sabia a respeito do homem que fora esperar.
A
imprensa nacional atentou para o encontro marcado por Glênio Sá,
ex-guerrilheiro do Araguaia, com um ex-companheiro de cela. Eles combinaram que
passariam o réveillon juntos na Torre de TV de Brasília. Um jornal da cidade
registrou a história em grande reportagem com a chamada: “Torre de TV: local em
que dois ex-presos do regime militar marcaram um encontro 25 anos atrás para
comemorar a liberdade”. Glênio sobreviveu ao regime militar, sem dedurar
ninguém, mas não pôde contar ao amigo sobre a nova etapa da sua vida, quando
reestruturou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em Natal, casou-se, teve um
casal de filhos, acreditava na revolução. Não conseguiu encontrar o amigo para
falar de coisas boas. Seus contatos resumiram-se ao período da prisão, havia
tantos anos.
Enquanto
Glênio estava preso por motivos políticos, o outro fora parar no Pelotão de
Investigações Criminais (PIC), no Setor Militar Urbano acusado de desviar armas
do Exército. Era um recruta, preso num cela vizinha. Ninguém sabia o seu nome.
Constava que era paranaense e fazia contato com o vizinho de cela, apavorado
com os gritos vindos das sessões de tortura. A Torre de TV era a única vista
externa que os dois tinham a partir da prisão. Eles subiam numa pia para
contemplá-la, enquanto sonhavam com a liberdade.
A
forma de se identificarem depois de tantos anos seria usar um cordão amarrado
no braço esquerdo e conduzir uma Bíblia na mão direita. Mesmo Glênio tendo
vivido fora de atividades religiosas, demonstrava grande respeito pelas Igrejas
e o uso da Bíblia no encontro não seria totalmente despropositado, pois o seu
amigo era evangélico. Todos estavam atentos no dia. Mas Glênio não poderia
estar lá. Seu amigo também não foi ao encontro. Talvez jamais saibamos porquê.
A jornalista lançou um olhar no infinito, para onde mandava em pensamento suas
homenagens a Glênio e dava por encerrada a busca pelo encontro que o tempo e a
vida desfizeram.
*Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário