As tentativas de apaziguamento e de acordos discretos
não reduziram o medo, quase pânico, que sacode as glândulas de numerosos homens
públicos. A miniaturização dos processos de captação de voz e de imagem torna
qualquer conversa um risco. Muitos deles começam a buscar, na memória, frases
ditas sem cuidados e sem malícia, pelo telefone, ou pessoalmente, a pessoas de
pouca confiança.
Por Mauro Santayana*
Teme-se, e com alguma razão, que a manipulação dos
registros de voz torne qualquer conversa um libelo. Não obstante o medo, e,
provavelmente, o surgimento de suspeitas infundadas contra homens honrados, o
vendaval será saudável.
Há décadas que o público e o privado se tornaram uma coisa
só, na vida brasileira. Apesar da luta permanente de inúmeros representantes do
povo, nas casas parlamentares e no poder executivo, e de magistrados de lisura
incontestável, contra o assalto ao bem comum, todos os poderes republicanos se
encontram infestados, principalmente a partir do desmonte do Estado, pelo
neoliberalismo. Para que isso fosse possível, mudaram-se as leis, para que tudo
fosse permitido em favor do mercado, até mesmo a entrega dos bens nacionais aos
aventureiros.
Embora em casos isolados, comprovou-se também a canalhice
de juízes vendedores de sentenças, quando não cúmplices de superfaturamento de
obras do Poder Judiciário, como ocorreu com conhecido magistrado trabalhista de
São Paulo. Os juízes podem errar, e erram, mas os seus votos não podem
submeter-se a outra instância que não seja a da reta consciência.
A mais grave infecção é a que afeta o Poder Legislativo.
Ainda que, no imaginário popular, o mais alto poder se localize na Presidência
da República, ele está no Congresso Nacional. O Congresso é, em sua missão
republicana, o povo reunido, para ditar as leis, fiscalizar seu cumprimento
pelo poder executivo, e decidir, com o seu consentimento, a formação do mais
alto tribunal da República, encarregado de assegurar o cumprimento dos
preceitos constitucionais, o STF. Os vícios de nossos ritos eleitorais
comprometem a composição das casas parlamentares. Não são os partidos que
formam as bancadas, mas, sim, os interesses corporativos, e até mesmo as
associações de celerados. Como estamos comprovando, o crime organizado também
envia aos parlamentos os seus representantes.
Enganam-se os que supõem ser possível domar a Comissão;
ela vacila nessas primeiras horas, mas isso não indica claudicação duradoura.
Há alguns meses, neste mesmo espaço, lembramos que um poder adormecido começa a
despertar, aqui e no mundo: o poder dos cidadãos.
A tecnologia trouxe muitos males, mas também a ágora para
dentro de casa. E a consciência da responsabilidade de cada um faz com que as
praças do mundo inteiro se tornem a ágora comum, para a afirmação de uma
humanidade que parecia perdida. A Grécia volta a ser o exemplo da razão
política, que deve prevalecer sobre o que Viviane Forester chamou de “l’horreur
économique”. O povo grego está vencendo, com seu destemor, a poderosa coligação
de banqueiros, sob a proteção da Alemanha, e se recusando a pagar, com o
desemprego e a miséria, a crise atual do capitalismo predador.
A ação investigatória, entre nós, não pode conduzir-se
pela insensatez das caças às bruxas, nem os protestos dos cidadãos serem
manipulados pelo poder econômico. Não estamos mais no tempo das fogueiras, mas
na civilização dos direitos fundamentais do homem. Toda punição aos culpados,
se a culpa for estabelecida, terá que obedecer aos mandamentos da lei, com o
pleno direito de defesa. E, confirmado o peculato, os valores desviados devem
ser devolvidos ao Tesouro.
Os principais envolvidos nas investigações da Polícia
Federal e do Ministério Público estão sendo assistidos por advogados caros e
reputados como competentes. Eles cumprem o seu dever, definido por uma carta
famosa de Ruy Barbosa a Evaristo de Moraes: qualquer réu tem o direito de
defesa, e seu advogado deve empregar todo seu conhecimento e toda sua
inteligência no cumprimento do mandato.
Sem o furor dos savanarolas, mas com o rigor da lei e da
justiça, a CPI e, em seguida, o Poder Judiciário, são chamados a restabelecer a
ordem do estado republicano e democrático, que se fundamenta na administração
transparente dos bens comuns, no benefício de todos. É hora de reconstruir o
Estado e, assim, devolver ao povo o que só ao povo pertence.
*Publicado no Jornal do Brasil
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