O jornal O Globo toma as dores da revista Veja e de seu
patrão na edição de terça 8, e determina: “Roberto Civita não é Rupert
Murdoch”. Em cena, o espírito corporativo. Manda a tradição do jornalismo
pátrio, fiel do pensamento único diante de qualquer risco de mudança.
Desde 2002, todos empenhados em criar problemas para o
governo do metalúrgico desabusado e, de dois anos para cá, para a burguesa que
lá pelas tantas pegou em armas contra a ditadura, embora nunca as tenha usado.
Os barões midiáticos detestam-se cordialmente uns aos outros, mas a ameaça
comum, ou o simples temor de que se manifeste, os leva a se unir, automática e
compactamente.
Não há necessidade de uma convocação explícita, o toque do
alerta alcança com exclusividade os seus ouvidos interiores enquanto ninguém
mais o escuta. E entra na liça o jornal da família Marinho para acusar quem
acusa o parceiro de jornada, o qual, comovido, transforma o texto global na sua
própria peça de defesa, desfraldada no site de Veja. A CPI do Cachoeira em
potência encerra perigos em primeiro lugar para a Editora Abril. Nem por isso
os demais da mídia nativa estão a salvo, o mal de um pode ser de todos.
O autor do editorial exibe a tranquilidade de Pitágoras na
hora de resolver seu teorema, na certeza de ter demolido com sua pena
(imortal?) os argumentos de CartaCapital. Arrisca-se, porém, igual a Rui
Falcão, de quem se apressa a citar a frase sobre a CPI, vista como a
oportunidade “de desmascarar o mensalão”. Com notável candura evoca o Caso
Watergate para justificar o chefe da sucursal de Veja em Brasília nas suas
notórias andanças com o chefão goiano. Ambos desastrados, o editorialista e o
líder petista.
Abalo-me a observar que a semanal abriliana em nada se
parece com o Washington Post, bem como Roberto Civita com Katharine Graham,
dona, à época de Watergate, do extraordinário diário da capital americana.
Poupo os leitores e os meus pacientes botões de comparações entre a mídia dos
Estados Unidos e a do Brasil, mas não deixo de acentuar a abissal diferença
entre o diretor de Veja e Ben Bradlee, diretor do Washington Post, e entre
Policarpo Jr. e Bob Woodward e Carl Bernstein, autores da série que obrigou
Richard Nixon a se demitir antes de sofrer o inevitável impeachment. E ainda
entre o Garganta Profunda, agente graduado do FBI, e um bicheiro mafioso.
Recomenda-se um mínimo de apego à verdade factual e ao
espírito crítico, embora seja do conhecimento até do mundo mineral a clamorosa
ignorância das redações nativas. Vale dizer, de todo modo, que, para não perder
o vezo, o editorialista global esquece, entre outras façanhas de Veja, aquele
épico momento em que a revista publica o dossiê fornecido por Daniel Dantas
sobre as contas no exterior de alguns figurões da República, a começar pelo
presidente Lula.
Anos de chumbo. O grande e conveniente amigo chamava-se
Armando Falcão
Concentro-me em outras miopias de O Globo. Sem citar
CartaCapital, o jornal a inclui entre “os veículos de imprensa chapa-branca,
que atuam como linha auxiliar dos setores radicais do PT”. Anotação marginal:
os radicais do PT são hoje em dia tão comuns quanto os brontossauros. Talvez
fossem anacrônicos nos seus tempos de plena exposição, hoje em dia mudaram de
ideia ou sumiram de vez. Há tempo CartaCapital lamenta que o PT tenha assumido
no poder as feições dos demais partidos.
Vamos, de todo modo, à vezeira acusação de que somos
chapa-branca. Apenas e tão somente porque entendemos que os governos do
presidente Lula e da presidenta Dilma são muito mais confiáveis do que seus
antecessores? Chapa-branca é a mídia nativa e O Globo cumpre a tarefa com
diligência vetusta e comovedora, destaque na opção pelos interesses dos
herdeiros da casa-grande, empenhados em manter de pé a senzala até o derradeiro
instante possível.
Não é por acaso que 64% dos brasileiros não dispõem de
saneamento básico e que 50 mil morrem assassinados anualmente. Ou que os nossos
índices de ensino e saúde públicos são dignos dos fundões da África, a par da
magnífica colocação do País entre aqueles que pior distribuem a renda. Em
compensação, a minoria privilegiada imita a vida dos emires árabes.
Chapa-branca a favor de quem, impávidos senhores da
prepotência, da velhacaria, da arrogância, da incompetência, da hipocrisia?
Arauto da ditadura, Roberto Marinho fermentou seu poder à sombra dela e fez das
Organizações Globo um monstro que assola o Brazil-zil-zil. Seu jornal apoiou o
golpe, o golpe dentro do golpe, a repressão feroz. Illo tempore, seu grande
amigo chamava-se Armando Falcão.
Opositor ferrenho das Diretas Já, rejubilado pelo fracasso
da Emenda Dante de Oliveira, seu grande amigo passou a atender pelo nome de
Antonio Carlos Magalhães. O doutor Roberto em pessoa manipulou o célebre debate
Lula versus Collor, para opor-se a este dois anos depois, cobrador, o
presidente caçador de marajás, de pedágios exorbitantes, quando já não havia
como segurá-lo depois das claras, circunstanciadas denúncias do motorista
Eriberto, publicadas pela revista IstoÉ, dirigida então pelo acima assinado.
Pronta às loas mais desbragadas a Fernando Henrique
presidente, com o aval de ACM, a Globo sustentou a reeleição comprada e a
privataria tucana, e resistiu à própria falência do País no começo de 1999,
após ter apoiado a candidatura de FHC na qualidade de defensor da estabilidade.
Não lhe faltaram compensações. Endividada até o chapéu, teve o presente de 800
milhões de reais do BNDES do senhor Reichstul. Haja chapa-branca.
Impossível a comparação entre a chamada “grande imprensa”
(eu a enxergo mínima) e o que chama de “linha auxiliar de setores radicais do
PT”, conforme definem as primeiras linhas do editorial de O Globo. A questão,
de verdade, é muito simples: há jornalismo e jornalismo. Ao contrário destes
“grandes”, nós entendemos que a liberdade sozinha, sem o acompanhamento pontual
da igualdade, é apenas a do mais forte, ou, se quiserem, do mais rico. É a
liberdade do rei leão no coração da selva, seguido a conveniente distância por
sua corte de ienas.
Acreditamos também que entregue à propaganda da linha auxiliar
da casa-grande, o Brasil não chegaria a ser o País que ele mesmo e sua nação
merecem. Nunca me canso de repetir Raymundo Faoro: “Eles querem um País de 20
milhões de habitantes e uma democracia sem povo”. No mais, sobra a evidência:
Roberto Civita é o Murdoch que este país pode se permitir, além de inventor da
lâmpada Skuromatic a convocar as trevas ao meio-dia. Temos de convir que, na
mídia brasileira, abundam os usuários deste milagroso objeto.
Publicado como editorail da revista Carta Capital
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