A assistência prestada a crianças e adolescentes
usuários de drogas tem sido alvo de preocupação entre especialistas em saúde
mental. O temor é que esteja ocorrendo um retorno aos antigos manicômios,
proibidos pela Lei de Saúde Mental (10.216), sancionada em 2001. Para
profissionais da área, o “retrocesso” acabou por ganhar respaldo com o anúncio,
no ano passado, do financiamento governamental das chamadas comunidades
terapêuticas.
Agência Brasil
A pesquisadora da organização não governamental Justiça
Global, Isabel Lima, alerta que o modelo adotado pelo governo vai contra as
diretrizes consolidadas para o tratamento da saúde mental. “O financiamento
público para comunidades é o financiamento da lógica manicomial, porque as
comunidades funcionam com o isolamento. Isto é contrário às diretrizes do SUS
[Sistema Único de Saúde], da Reforma Psiquiátrica e da Política de Atenção
Integral ao Usuário de Drogas. Estas unidades especializadas são criadas para
prestar cuidados aos dependentes de drogas, com internação, eliminando o
contato da pessoa com o meio onde vivia antes de ser abrigada.”
Para repassar dinheiro público para um amplo leque de
comunidades terapêuticas, o governo decidiu, no ano passado, revogar a Resolução 101/2001 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa),
que estabelecia regras mínimas a serem seguidas pelas unidades de tratamento.
Na época, a secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Paulina Duarte,
disse que a decisão de cassar a resolução, anunciada em reunião pela presidenta
Dilma Rousseff, visava “atender à nova perspectiva de acolhimento das
comunidades” e incluir no rol de entidades financiadas com recursos do governo
aquelas que tinham “dificuldades” de infraestrutura e de equipe técnica.
Dias depois, a Anvisa publicou uma nova norma na qual
impõe a presença de um profissional de nível superior como responsável técnico,
sem que ele seja necessariamente da área de saúde. O órgão explicou, na época,
que a medida tinha por objetivo ajudar na organização das comunidades terapêuticas,
grande parte delas mantida por voluntários.
O movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado no final dos
anos de 1970, resultou na aprovação da Lei de Saúde Mental, que há dez anos
prevê o tratamento aberto, com convívio comunitário, sem o isolamento.
Recentemente, resultado de fiscalização em abrigos
reacendeu o debate sobre o tratamento de usuários de drogas. O
relatório Visitas aos Abrigos Especializados para Crianças e
Adolescentes denunciou que crianças e adolescentes estariam sendo dopados
em abrigos inadequados situados no Rio de Janeiro.
O relatório foi elaborado pelos conselhos regionais de
Psicologia e Serviço Social, o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio
(Pontifícia Universidade Católica), o Grupo Tortura Nunca Mais e a ONG Projeto
Legal, além da Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e
combate à tortura da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O grupo multidisciplinar, formado por 27 profissionais,
visitou quatro abrigos especializados, em Campo Grande e Guaratiba, na zona
oeste do Rio de Janeiro, em maio deste ano. As quatro unidades são geridas pela
ONG Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado,
conforme o relatório.
Com as visitas, os integrantes do grupo identificaram
inúmeros problemas, como isolamento e encarceramento dos internos,
medicalização descontrolada, falta de informação sobre os efeitos do tratamento
e alto número de reincidências no tratamento, relatado pelos atendentes dessas
instituições. O relatório também alerta para o retorno aos manicômios.
Desde maio do ano passado, a internação compulsória de crianças e adolescentes que vivem nas ruas, fazem
uso de drogas ou não, está autorizada pela prefeitura da capital fluminense.
Além do Rio de Janeiro, capitais como São Paulo e Belo Horizonte também adotam
a mesma política.
Para Alice De Marchi, psicóloga do Conselho Regional de
Psicologia do Rio de Janeiro e que participou das fiscalizações e da elaboração
do relatório, a concentração desses diferentes aspectos em um único local
representa um retrocesso nas políticas de assistência social e de saúde mental.
“Essa é a própria lógica da instituição total, encontrada
em manicômios, na antiga Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], em
presídios”, afirmou a psicóloga, em nota divulgada pelo Conselho Federal de
Psicologia por ocasião da divulgação do relatório.
A psicóloga destacou o caráter de privação de liberdade
encontrado nos estabelecimentos fiscalizados. “A política de recolhimento
compulsório flerta perigosamente com o modelo manicomial de institucionalização
e exclusão do convívio social”, disse.
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