O Brasil convive, tragicamente, com uma espécie de
"epidemia de indiferença", quase cumplicidade de grande parcela da
sociedade e dos governos, com uma situação que deveria estar sendo tratada como
uma verdadeira calamidade social. Em 2010, 8.686 crianças e adolescentes foram
vítimas de homicídio. Estamos falando ao equivalente a cerca de 43 aviões da
TAM, como o do trágico acidente em 2007, lotados de crianças e adolescentes.
Por Atila Roque
De 1981 a 2010, o país perdeu assassinadas 176.044 pessoas
com 19 anos ou menos, sendo que meninos representam em torno de 90% do total.
Esses dados horripilantes nos alcançaram mais uma em meados de julho, quando
foi divulgado o "Mapa da Violência 2012 - Crianças e Adolescentes do Brasil",
do pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz, coordenador de Estudos sobre a
Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil.
Os dados e análises compilados sistematicamente nos últimos anos pelo Mapa
revelam um cenário de dor e horror que não tem obtido a atenção que merece na
sociedade brasileira.
Passados mais de uma década de governo do PT e mais de
trinta anos de regimes democráticos a área de segurança pública permanece
praticamente intocada. Arraigada em um modelo arcaico que não apenas relega aos
Estados o grosso das responsabilidades com a implementação das políticas de
segurança e que mantém um arcabouço institucional de polícia militarizado que
penaliza a sociedade e, em última instância, os próprios profissionais do setor:
mal remunerados, mal treinados e sistematicamente desvalorizados. Uma das
consequências são os índices de violência e homicídios associados as más
práticas da polícia. Somente no Estado de São Paulo, onde a taxa geral de
homicídios voltou a subir depois de um período de queda, a polícia matou nos
últimos cinco anos nove vezes mais que o total de mortes decorrentes da ação
policial em todo os EUA.
A taxa de homicídios na população entre 0 e 19 anos em
1980 era de 3,1 para cada grupo de 100 mil. Em 2010, foi de 13,8
O exemplo mais recente desse descaso do Estado brasileiro
em relação a gravidade do tema foi a notícia divulgado ao final do ano passado
que o tão esperado Plano Nacional de Redução de Homicídios havia sido
engavetado pelo Ministério da Justiça por orientação expressa da presidente
Dilma, que preferia concentrar esforços na ampliação e modernização do sistema
penitenciário, no combate ao crack e no monitoramento das fronteiras, adiando
mais uma vez a abordagem integrada do problema. Em fevereiro deste ano o
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou que a redução dos
homicídios seria uma prioridade do novo Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência. Infelizmente muito pouco e muito tarde para um problema que se
repete todos os anos e para o qual não faltam análises, diagnósticos e
propostas colocadas em diferentes graus em debate e experimentadas em pequena
escala ao longo das últimas duas décadas.
As chances de uma criança ou adolescente brasileiro morrer
assassinado são maiores hoje do que eram há 30 anos, colocando o país na quarta
pior colocação numa comparação com outros 91 países. Em 1980, a taxa de
homicídios na população entre zero e 19 anos era de 3,1 para cada 100 mil
pessoas. Pulou para 7,7 em 1990, chegou a 11,9 em 2000 e alcançou 13,8 em 2010.
Um crescimento de 346,4% em três décadas, em contraste com a mortalidade
provocada por problemas de saúde, que teve queda acentuada. Quando considerada
toda a população, a taxa de homicídios em 2010 foi de 27 por 100 mil
habitantes. Considera-se que há uma epidemia de homicídios quando a taxa fica
acima de 10 por 100 mil.
De fato, o Brasil é o país com o maior número bruto de
homicídios no mundo, ocupando o sexto lugar quando considerado a proporção em
relação ao tamanho da população do país. E os jovens, em sua maioria crianças e
adolescentes, meninos, ocupam uma parcela desproporcional dessas mortes, sem
que isso vire um escândalo público nacional. Passado o momento da divulgação
dos dados voltamos a situação de quase inércia em que as medidas tomadas não
incorporam o sentido de urgência e emergência que a questão merece.
O fim trágico da vida desses jovens vem acompanhado da
anulação simbólica de suas histórias, a dor das famílias e dos amigos ignorada,
sonhos e trajetórias de vidas suprimidos. Isso ocorre devido à naturalização da
violência e a um grau assustador de complacência em relação a essa tragédia. É
como se estivéssemos dizendo, como sociedade e governo, que o destino deles já
estava traçado. Estavam destinados à tragédia e à morte precoce, violenta,
porque nasceram no lugar errado, na classe social errada e com a cor da pele
errada, em um país onde o racismo faz parte do processo de socialização e do
modo de estruturação do poder na sociedade.
São jovens submetidos constantemente a um processo que os
transforma em ameaça, os desumaniza, viram "delinquentes",
"traficantes", "marginais" ou, às vezes, nem isso, apenas
"vítimas" de um contexto de violência e discriminação em relação ao
qual a sociedade prefere virar às costas e olhar para o outro lado, com raras
exceções.
É preciso quebrar esse padrão de violência e indiferença e
compreender que o país está perdendo o melhor da sua juventude. Esses meninos
não estavam destinados a morte violenta, mas sim a serem médicos, artistas,
engenheiros, professores, filhos e pais, avôs e presidentes da República.
Precisamos criar alternativas, abrir canais de conversação
na sociedade sobre essa tragédia, combater a violência armada, inclusive
policial, estabelecer instrumentos de participação e controle cidadão sobre o
desenho e implementação das políticas públicas de segurança. Reconhecer que
isso é uma questão nacional, um problema do estado e central à consolidação da
democracia. Precisamos quebrar a apatia, o silêncio e a cumplicidade passiva
com o extermínio dos jovens brasileiros.
Atila Roque é diretor executivo da Anistia
Internacional Brasil
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Desanimador, realmente... Sem dúvida, é preciso falar dessa indiferença, comportamento tão comum entre nós.
ResponderExcluirParabéns pelo blog.