O
Brasil vive desde sua independência um processo contraditório no que diz
respeito a sua memória. Na afirmação da nação emergente, consolidou-se uma
história oficial, donde todos os atos de violência foram ou glorificados ou
relegados ao esquecimento.
Por
José Eduardo Cardozo e Paulo Abrão, na Folha de SP*
Esse
processo foi eivado por um viés elitista, marcado por duas características: uma
leitura histórica sob a perspectiva dos países centrais e uma tradição narrativa
que assume as versões oficiais dos vencedores e colonizadores.
Apenas
muito recentemente o Estado passou a enfrentar, de maneira aberta, as sequelas
de seu passado de violações "esquecidas".
Os
fatos desvelados pelas Comissões de Mortos e Desaparecidos e da Anistia, a
partir da oitiva das vítimas, confrontaram a versão dos "vencedores",
registrada nos documentos oficiais da ditadura, formulados para encobrir
torturas e execuções. As comissões de reparação assentaram uma narrativa
plural, que buscou contemplar a perspectiva dos (outrora) vencidos, juntando-se
a uma nova tradição memorialística, de revelação do legado dos regimes
autoritários.
O
Brasil finalmente começou a buscar sua história negada, enfrentando crítica
recorrente dos relatórios dos organismos internacionais de proteção dos
direitos humanos nos últimos 20 anos: a de que, em seu acerto de contas com o
passado autoritário, não tenha estabelecido mecanismos de revelação da verdade
histórica e construído espaço de memória e homenagem às vítimas das violações.
Duas
medidas surgiram para superar essa crítica. Dando sequência às iniciativas do
governo Lula, o governo da presidenta Dilma empenhou sua agenda política em
torno da aprovação da Comissão da Verdade e da construção do Memorial da
Anistia Política no Brasil.
A
lei que institui a Comissão da Verdade possui muitas qualidades.
A
primeira delas, a de suprir a lacuna jurídica quanto à positivação do direito à
verdade como direito fundamental do brasileiro.
A
segunda, a de possuir poderes para levar a cabo um trabalho inédito, tendo
equipe com dedicação exclusiva e integral para sistematizar todas as graves
violações de direitos humanos (e sua autoria) por meio de um amplo processo de
escuta pública e coleta documental.
Poderá
ainda propor medidas e reformas institucionais para prevenir futuros crimes
contra a humanidade. É inegável a relevância política de tal Comissão nascer
com o apoio de todos os partidos, o que lhe confere autoridade para transpor um
ambiente de negação histórica e permite tratar dos temas mais dolorosos da
pátria de maneira legítima e plural.
Paralelamente,
o Memorial da Anistia será um equipamento público de consciência, reparação e
memória, além de homenagem aos que lutaram contra a ditadura.
A
memória tem papel decisivo para impedir que a intolerância e a injustiça se
banalizem e que a barbárie se repita.
Essas
medidas agregam-se à agenda da transição política de todos os governos civis e
Parlamentos pós-redemocratização.
Sarney
extinguiu a censura e desfez os organismos de repressão; Collor acabou com o
SNI e aprovou uma primeira lei de acesso a arquivos; Fernando Henrique criou as
Comissões de Anistia e sobre Mortos e Desaparecidos; Lula inovou com as
Caravanas da Anistia, o livro "Direito à Memória e à Verdade" e com a
abertura de arquivos pelo projeto Memórias Reveladas.
No
Brasil de hoje, os direitos humanos devem ser vistos como uma precondição para
um desenvolvimento social pleno.
Na
nova geopolítica global, a vocação de líder de nosso país avança. Não só na
perspectiva econômica, mas também na humanística. Nada mais legítimo e oportuno
que a construção da nossa identidade seja agora forjada a partir de uma memória
da defesa da liberdade.
José
Eduardo Cardozo é ministro da Justiça.
Paulo
Abrão é secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia.
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