25
anos de cartas e desencontros com Drummond de Andrade
por
Emiliano Urbim na Revista Piauí
Sentada
na poltrona da sala de sua casa modesta, livro aberto no colo, Helena Maria
Vicari, 68 anos, declama: Eis meu pobre elefante/ pronto para sair/ à procura
de amigos. A leitura é ritmada e tensa. Vai o meu elefante/ pela rua povoada,/
mas não o querem ver/ nem mesmo para rir. Helena faz uma pausa, ajeita os
óculos e passa a mão pelos cabelos tingidos de loiro claro. Mostra com
elegância/ sua mínima vida,/ e não há na cidade/ alma que se disponha/ a
recolher em si/ desse corpo sensível/ a fugitiva imagem... Emocionada, ela pára
no qüinquagésimo sexto dos cem versos de O Elefante. Sem tirar olhos nem dedos
das páginas, comenta: "Esse é o meu favorito. Me arrependo de nunca ter
dito a ele".
"Ele" é Carlos Drummond de Andrade. Nos últimos 26
de seus 84 anos, Drummond trocou cartas com a professora Helena, de Guaporé,
cidade de 20 mil habitantes encravada numa parte menos badalada da serra
gaúcha. Ela guarda numa pasta preta, abrigadas em plástico, cerca de sessenta
cartas, cartões-postais e bilhetes que o poeta lhe enviou; da correspondência
dela para ele, não existe cópia. Há mensagens de Drummond datilografadas,
escritas à mão, ilustradas, enfeitadas com rabiscos de canetinhas hidrocor. Ao longo
das linhas e dos anos, algumas palavras se repetem: "carinho",
"amizade", "gratidão", "paz", "respeitosos
abraços". Mas essa relação de dezoito anos - que começou com
"Desejando-lhe também um feliz Ano-Novo, com êxito nos estudos, envio-lhe
o autógrafo pedido" e terminou com "Uma das alegrias da minha vida é
contar com amizades fiéis como a de você, que venceu o tempo e a
distância" - nunca foi além do papel. Helena e Drummond nunca se
encontraram. "Pedras no meio do caminho", ela diz, sem sorrir com o
trocadilho.
Helena conheceu os versos de Drummond por intermédio de Lara de
Lemos, poeta e cronista do Correio do Povo, o maior jornal do Rio Grande
do Sul, a quem enviava cartas e poemas na esperança de uma palavra de
incentivo.
Para retribuir o esforço da jovem de 20 anos, Lara se encontrou com
ela em 1960 e lhe apresentou a obra de Drummond. Helena ficou deslumbrada.
Um
ano depois, cursando magistério num colégio católico, Helena ouviu de uma das
freiras que Cecília Meireles seria eterna e que Drummond, moderno, cairia no
esquecimento. Foi o pretexto para escrever ao herói - achou o endereço num
almanaque de poesia brasileira, numa seção intitulada "Corresponda-se com
os seus poetas". Nessa primeira carta, fez pouco da freira futuróloga:
"Minha professora de literatura não gosta do senhor, mas eu o acho o maior
do Brasil". Recebeu uma polida resposta datilografada e um cartão com
autógrafo.
Helena passou a escrever sempre. Duas datas eram sagradas: a Páscoa
e o aniversário do poeta, em 31 de outubro. Em 1962, ela recortou a assinatura
de Drummond de uma carta para dar de presente a uma das religiosas. No ano
seguinte, Drummond já se permitia algumas confissões: "Continuo sendo
homem de Itabira mergulhado na confusão da Guanabara". No mesmo ano, ela
viajou à tal Guanabara, com as colegas do curso de magistério. Viu o mar pela
primeira vez. "Pensei em visitar o Drummond, mas ninguém quis me acompanhar
e também não deixaram que eu fosse sozinha." Em uma carta, Drummond
lamentou o desencontro.
Em 1964, depois de um namoro de oito anos, Helena se
casou com Jurandir João Vicari, que no começo desconfiou das intenções do
poeta: "Ele tinha aquela amante de muitos anos, a Lygia Fernandes. Achei
que pudesse estar tentando alguma coisa com a Helena". Com o passar do
tempo, o marido se acalmou: "A verdade é que as cartas sempre foram
respeitosas".
O tema principal da correspondência costumava ser a própria
família Vicari. O primeiro filho de Helena e Jurandir, Bagder, nasceu no mesmo
dia do aniversário do poeta. Mereceu de Drummond uma quadrinha: Badger, meu
pequenino companheiro/ de signo, sê feliz em teu destino / Amar, servir, cantar
é o verdadeiro/ Bem de existir, sob o clarão divino. Os outros filhos, Romaine,
Rayane e Glauber (por causa do cineasta baiano), e a afilhada Gisele também
tiveram direito a versos drummondianos. Em abril de 1966, um poema para a
cidade dos Vicari: Guaporé fica longe do Rio de Janeiro?/ Não./ Guaporé fica
perto/ se na Páscoa, fagueiro,/ recebo o voto certo/ e amigo - já adivinho/ da
família Vicari/ que me chega pelo ar e me envolve de carinho.
Drummond parecia
satisfeito com a relação que haviam construído. Em 1970, escreveu: "Não
nos conhecemos pessoalmente, e entretanto nossa amizade perdura, como uma
planta viçosa, que vai se tornando árvore de boa sombra". Mas, para
Helena, essa proximidade virtual não era suficiente. No ano seguinte, voltou ao
Rio, dessa vez com o marido. Foram até o apartamento do poeta, em Copacabana,
para uma visita surpresa. Ao chegar, descobriram que a família Drummond havia
saído minutos antes, rumo a Petrópolis. O porteiro permitiu que Helena subisse
até o hall do apartamento, onde ela deixou um bilhete e o presente que levara:
uma espátula de prata com motivos gaúchos.
Se ela insistia em encontrá-lo,
era, sim, por amizade, mas Helena tinha também uma vaidade artística e queria
vê-la reconhecida. Enquanto o poeta lhe mandava quadrinhas singelas que em nada
lembram o Poema de Sete Faces ou A Máquina do Mundo, Helena retribuía com
versos de sua própria lavra. Drummond era econômico nos elogios. "Acho
você melhor nos poemas curtos, que, aliás, são mais difíceis de fazer."
"Ele elogiava, mas não deu um empurrãozinho, então eu fiquei me achando
menos", conta ela, que chegou a ter um programa numa rádio local chamado
Sempre é Tempo de Poesia, em que lia poemas dos outros, nunca os seus.
Passados
dezessete anos desde a carta inicial, Helena venceu a vergonha e telefonou pela
primeira vez para Drummond, para lhe dar os parabéns pelo aniversário de 76
anos. Nervosa, mostrou-se bem menos prolixa e mais formal do que nas cartas.
"Minha filha, trate-me sem tanta cerimônia", ele disse. "Afinal,
nossa amizade é antiga e o tratamento 'senhor' me faz sentir um
centenário." Não se deve à memória o fato de Helena se lembrar
detalhadamente do que Drummond lhe disse: assim que desligou o telefone, ela
pegou um papel e canetinhas hidrográficas e registrou toda a conversa.
Enquanto
seus sonhos de ser poeta não decolavam, Helena dava aulas no colégio onde
estudara e criava os quatro filhos. Nem no trabalho, nem em casa falava muito
das cartas. "Eu nunca tinha visto essa pasta da mãe", comenta Rayane,
hoje com 34 anos. E folheia as cartas de décadas protegidas em
plástico.
Quando Drummond perdeu a filha, Maria Julieta, em 5 de agosto de
1987, Helena relutou em lhe escrever. "Preferi esperar um momento em que
ele não estivesse tão abalado." O poeta morreu doze dias depois. Ela se
arrepende: "Talvez uma carta pudesse ter dado um alento a ele. Talvez
tivesse feito alguma diferença".
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