Sou
de uma geração treinada em ler nas entrelinhas. Vivi as longas décadas de
regimes ditatoriais latino-americanos e aprendi a pesquisar as intenções nos
discursos oficiais. O dr. Ulysses Guimarães me ensinou que se deve prestar
atenção aos silêncios nos discursos.
Por
Carlos Lessa*, em Valor Econômico
Percebo
uma crescente preocupação da presidente Dilma com a China e suas pretensões
geopolíticas e geoeconômicas. Na reunião do G-20, a presidente declarou sua
preocupação com a ausência de compras chinesas de produtos industriais
brasileiros (leia-se, nas entrelinhas, que o Brasil é exportador de alimentos e
matérias-primas sem processamento: soja em grão, minério de ferro bruto, couro
de vaca sem curtição etc).
Em
passado relativamente recente, exportamos geradores para a grande usina do Rio
Amarelo; agora, estamos importando geradores da China. Vendemos aviões da
Embraer. Bobamente, aceitamos instalar uma filial na China; os chineses
clonaram a fábrica da Embraer e, hoje, competem com o avião brasileiro no
mercado mundial. Esta semana, a presidência declarou sua preocupação com a
tendência chinesa à aquisição de grandes glebas agrícolas no Brasil. A
percepção presidencial não resolve o problema das relações Brasil-China, porém
já é meio caminho andado que o poder executivo nacional tenha aquelas dimensões
presentes.
O
enigma chinês é fácil decifrar. O Brasil cresceu, de 1930 a 1980, 7% ao ano.
Depois dessas décadas, mergulhamos na mediocridade e patinamos com uma taxa
média ridícula de 2,5%. A China, nas últimas décadas, vem crescendo anualmente
entre 9% e 10%. Entretanto, está em situação potencialmente pior que o Brasil.
Hoje, mais de 80% da população brasileira está em áreas urbanas e 50% em
metropolitanas e nem chegamos aos 200 milhões de habitantes.
A
China tem uma população de 1,34 bilhão, sendo que menos de 50% estão na área
urbana. Como a renda média do chinês rural é um terço da do chinês urbano, é
inexorável uma transferência equivalente a duas vezes a população brasileira
para as cidades chinesas, nos próximos 20 anos. É fácil entender o sonho de
urbanização do chinês rural. A periferia urbana das cidades chinesas já está
"favelizada".
Sabemos
que o Brasil tem uma péssima distribuição de renda e riqueza. Houve uma
melhoria da participação dos salários na renda nacional, que evoluiu, desde
2000, de 34% para 39%. A elevação do poder de compra dos salários foi
importante, entretanto o leque salarial se tornou mais desigual e houve pouca
geração de empregos de boa qualidade. O salário médio brasileiro é muito baixo,
entretanto é, por mês, igual ao limite de pobreza chinês ao ano (cerca de
€150), isto é, o brasileiro pobre ganha 12 vezes mais que o chinês pobre. Nosso
governo fala de uma "nova classe média" e esconde que o lucro real
dos grandes bancos brasileiros cresceu 11% por ano no período FHC e 14% durante
os dois mandatos do presidente Lula. Enquanto os colossais bancos chineses têm
uma rentabilidade patrimonial inferior a 10%, os bancos brasileiros chegam a
20%.
É
impensável o futuro demográfico chinês. No passado, cada família só podia ter
um filho; agora, essa regra está sendo relaxada. A urbanização e a
industrialização chinesas já comprometeram o lençol freático da China do Norte.
Com restrições de água, e necessitando transferi-la cada vez mais para a sede
da indústria e população urbana, a China não produzirá alimentos suficientes.
Se o consumo interno da China crescer cada vez mais, haverá falta não só de
água, mas também de energia fóssil e hidráulica, além de, obviamente, todo um
elenco de matérias-primas.
O
planejamento estratégico de longo prazo da China é para valer. O projeto
geopolítico e a geoeconômico chinês está transformando a África e parte da Ásia
do sudeste em fronteira fornecedora de alimentos e matérias-primas. Em busca de
autossuficiência de minério de ferro, a China já está desenvolvendo as enormes
reservas do Gabão. A petroleira chinesa já está nas reservas de petróleo de gás
do coração da África e a ocupação econômica de Angola é prioridade diplomática
e financeira da China.
O
extremo sul da América Latina é objeto de desejo expansionista chinês, que se
propôs a fazer e operar uma nova ferrovia ligando Buenos Aires a Valparaíso,
perfurando um túnel mais baixo na Cordilheira dos Andes. O Chile - com
pretensão de se converter na "Singapura" do Pacífico Sul - e os
interesses agro-exportadores argentinos adoram a ideia. Carne, soja, trigo,
madeira, pescado e cobre estarão na periferia da China do futuro. A presidência
argentina é relutante em relação a esse projeto, porém o Mercosul está sob o
risco de se converter, dinamicamente, em pura retórica.
O
Império do Meio, unificado pela dinastia Han (ainda antes de Cristo),
atravessou séculos com Estado centralizado e burocracia profissional estruturada.
No século XIX, a China balançou pela penetração da Inglaterra vitoriana;
enfrentou a perfídia mercantil do ópio controlado pela Índia britânica. Sua
república, no século XX, foi ameaçada pela expansão japonesa, e somente após a
Segunda Guerra Mundial conseguiu, com o Partido Comunista Chinês (PCC)
restaurar a centralidade.
Com
um pragmatismo secularmente desenvolvido, a China combinou o Estado
hipercontrolador com a "economia de mercado". "Casou" com
os EUA e criou um G-2, aonde mais de 3 mil filiais americanas produzem na China
e exportam para o mundo (70% das exportações de produtos industriais são de
filiais americanas). O superávit comercial chinês é predominantemente aplicado
em títulos do Tesouro.
Esse
é um sólido matrimônio, em que os cônjuges podem até brigar, mas não renegam a
aliança mutuamente conveniente. Enquanto isso, a China repete a proposta da
Inglaterra vitoriana para a periferia mundial: fonte de matérias-primas e
alimentos, a periferia mundial é, progressivamente, endividada com os bancos
chineses e seu espaço econômico é ocupado por filiais da China. A Revolução
Meiji, que modernizou e industrializou o Japão, está em plena marcha na China,
que procura ser a campeã mundial em ciência e tecnologia. A estratégia da China
combina as chaves do sucesso da Inglaterra vitoriana com a prioridade
científico-tecnológica japonesa.
Que
a China faça o que quiser, porém o Brasil não deve se converter na "bola
da vez" da periferia chinesa. País tropical, com enormes reservas de terra
agriculturável, água e fontes de energia fóssil e hidrelétrica, imagine-se a
prioridade estratégica para o planejamento chinês em sua marcha pela periferia.
O
discurso da globalização, a fantasia da "integração competitiva", a
ilusão de ser "celeiro do mundo" com brasileiros ainda famintos, e a
atrofia da soberania nacional podem vir a ser um discurso de absorção da
proposta neocolonizadora da China.
Leio,
nas palavras da presidente, uma percepção do risco do "conto do
vigário" chinês. Temo os vendilhões da pátria, entregando energia e
alimentos para o neo-sonho imperial.
*
Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ.
Foi presidente do BNDES.
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