Por
Cecília Meireles
MOTIVO
Eu
canto porque o instante existe
e
a minha vida está completa.
Não
sou alegre nem sou triste:
sou
poeta.
Irmão
das coisas fugidias,
não
sinto gozo nem tormento.
Atravesso
noites e dias
no
vento.
Se
desmorono ou se edifico,
se
permaneço ou se desfaço,
—
não sei, não sei. Não sei se fico
ou
passo.
Sei
que canto. E a canção é tudo.
Tem
sangue eterno e asa ritmada.
E
um dia sei que estarei mudo:
—
mais nada.
De
Viagem (1939)
BALADA
DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO
Dez
bailarinas deslizam
por
um chão de espelho.
Têm
corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras
azuis e dedos vermelhos.
Levantam
véus brancos, de ingênuos aromas,
e
dobram amarelos joelhos.
Andam
as dez bailarinas
sem
voz, em redor das mesas.
Há
mãos sobre facas, dentes sobre flores,
e
com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre
a música e a dança escorre
uma
sedosa escada de vileza.
As
dez bailarinas avançam
como
gafanhotos perdidos.
Avançam,
recuam, na sala compacta,
empurrando
olhares e arranhando o ruído.
Tão
nuas se sentem que já vão cobertas
de
imaginários, chorosos vestidos.
As
dez bailarinas escondem
nos
cílios verdes as pupilas.
Em
seus quadris fosforescentes,
passa
uma faixa de morte tranqüila.
Como
quem leva para a terra um filho morto,
levam
seu próprio corpo, que baila e cintila.
Os
homens gordos olham com um tédio enorme
as
dez bailarinas tão frias.
Pobres
serpentes sem luxúria,
que
são crianças, durante o dia.
Dez
anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados
de melancolia.
Vão
perpassando como dez múmias,
as
bailarinas fatigadas.
Ramo
de nardos inclinando flores
azuis,
brancas, verdes, douradas.
Dez
mães chorariam, se vissem
as
bailarinas de mãos dadas.
De
Retrato Natural (1949)
CANÇÃO
Nunca
eu tivera querido
dizer
palavra tão louca:
bateu-me
o vento na boca,
e
depois no teu ouvido.
Levou
somente a palavra,
deixou
ficar o sentido.
O
sentido está guardado
no
rosto com que te miro,
neste
perdido suspiro
que
te segue alucinado,
no
meu sorriso suspenso
como
um beijo malogrado.
Nunca
ninguém viu ninguém
que
o amor pusesse tão triste.
Essa
tristeza não viste,
e
eu sei que ela se vê bem...
Só
se aquele mesmo vento
fechou
teus olhos, também...
De
Viagem (1939)
CANÇÃO
No
desequilíbrio dos mares,
as
proas giraram sozinhas...
Numa
das naves que afundaram
é
que certamente tu vinhas.
Eu
te esperei todos os séculos
sem
desespero e sem desgosto,
e
morri de infinitas mortes
guardando
sempre o mesmo rosto.
Quando
as ondas te carregaram,
meu
olhos, entre águas e areias,
cegaram
como os das estátuas,
a
tudo que existe alheias.
Minhas
mãos pararam sobre o ar
e
endureceram junto ao vento,
e
perderam a cor que tinham
e
a lembrança do movimento.
E
o sorriso que eu te levava
desprendeu-se
e caiu de mim:
e
só talvez ele ainda viva
dentro
dessas águas sem fim.
De
Viagem (1939)
CANÇÃO
Pus
o meu sonho num navio
e
o navio em cima do mar;
—
depois, abri o mar com as mãos,
para
meu sonho naufragar.
Minhas
mãos ainda estão molhadas
do
azul das ondas entreabertas,
e
a cor que escorre dos meus dedos
colore
as areias desertas.
O
vento vem vindo de longe,
a
noite se curva de frio;
debaixo
da água vai morrendo
meu
sonho, dentro de um navio...
Chorarei
quanto for preciso,
para
fazer com que o mar cresça,
e
o meu navio chegue ao fundo
e
o meu sonho desapareça.
Depois,
tudo estará perfeito:
praia
lisa, águas ordenadas,
meus
olhos secos como pedras
e
minhas duas mãos quebradas.
De
Viagem (1939)
CANÇÃO
DE ALTA NOITE
Alta
noite, lua quieta,
muros
frios, praia rasa.
Andar,
andar, que um poeta
não
necessita de casa.
Acaba-se
a última porta.
O
resto é o chão do abandono.
Um
poeta, na noite morta,
não
necessita de sono.
Andar...
Perder o seu passo
na
noite, também perdida.
Um
poeta, à mercê do espaço,
nem
necessita de vida.
Andar...
— enquanto consente
Deus
que a noite seja andada.
Porque
o poeta, indiferente,
anda
por andar — somente.
Não
necessita de nada.
De
Vaga Música (1942)
CANÇÃO
DO CAMINHO
Por
aqui vou sem programa,
sem
rumo,
sem
nenhum itinerário.
O
destino de quem ama
é
vário,
como
o trajeto do fumo.
Minha
canção vai comigo.
Vai
doce.
Tão
sereno é seu compasso
que
penso em ti, meu amigo.
—
Se fosse,
em
vez da canção, teu braço!
Ah!
mas logo ali adiante
—
tão perto! —
acaba-se
a terra bela.
Para
este pequeno instante,
decerto,
é
melhor ir só com ela.
(Isto
são coisas que digo,
que
invento,
para
achar a vida boa...
A
canção que vai comigo
é
a forma de esquecimento
do
sonho sonhado à toa...)
De
Vaga Música (1942)
GUITARRA
Punhal
de prata já eras,
punhal
de prata!
Nem
foste tu que fizeste
a
minha mão insensata.
Vi-te
brilhar entre as pedras,
punhal
de prata!
—
no cabo, flores abertas,
no
gume, a medida exata,
a
exata, a medida certa,
punhal
de prata,
para
atravessar-me o peito
com
uma letra e uma data.
A
maior pena que eu tenho,
punhal
de prata,
não
é de me ver morrendo,
mas
de saber quem me mata.
De
Viagem (1939)
MODINHA
Tuas
palavras antigas
deixei-as
todas, deixei-as,
junto
com as minhas cantigas,
desenhadas
nas areias.
Tantos
sóis e tantas luas
brilharam
sobre essas linhas,
das
cantigas — que eram tuas —
das
palavras — que eram minhas!
O
mar, de língua sonora,
sabe
o presente e o passado.
Canta
o que é meu, vai-se embora:
que
o resto é pouco e apagado.
De
Vaga Música (1942)
SERENATA
Repara
na canção tardia
que
timidamente se eleva,
num
arrulho de noite fria.
O
orvalho treme sobre a treva
e
o sonho da noite procura
a
voz que o vento abraça e leva.
Repara
a canção tardia
que
oferece a um mundo desfeito
sua
flor de melancolia.
É
tão triste, mas tão perfeito,
o
movimento em que murmura,
como
o do coração no peito.
Repara
na canção tardia
que
por sobre o teu nome, apenas,
desenha
a sua melodia.
E
nessas letras tão pequenas
o
universo inteiro perdura.
E
o tempo suspira na altura
por
eternidades serenas.
De
Viagem (1939)
PÁSSARO
Aquilo
que ontem cantava
já
não canta.
Morreu
de uma flor na boca:
não
do espinho na garganta.
Ele
amava a água sem sede,
e,
em verdade,
tendo
asas, fitava o tempo,
livre
de necessidade.
Não
foi desejo ou imprudência:
não
foi nada.
E
o dia toca em silêncio
a
desventura causada.
Se
acaso isso é desventura:
ir-se
a vida
sobre
uma rosa tão bela,
por
uma tênue ferida.
De
Retrato Natural (1949)
Fonte:
WWW.algumapoesia.com.br
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