A Comissão Nacional da Verdade também vai investigar os
crimes cometidos durante a ditadura militar contra os povos indígenas, com a
participação ou a conivência do Estado. “É um tema que está no nosso
planejamento. Vamos investigar isso, sim, porque na construção de rodovias há
histórias terríveis de violações de direitos indígenas”, ressaltou nesta semana
um dos membros da comissão, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, após encontro
com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
Daniel Mello da Agência Brasil
O Grupo Tortura Nunca Mais vem se articulando com outras
entidades, como a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, para
reunir material sobre as violações contra os índios no período da ditadura.
Segundo o vice-presidente do grupo, Marcelo Zelic, a política de extermínio
promovida pelo regime é evidenciada em documentos públicos, como os que mostram
que, na década de 1960, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na
Câmara dos Deputados para apurar os massacres de indígenas.
“Essa comissão é criada logo após a Comissão de Inquérito
do Ministério do Interior ter produzido um relatório de 5.115 páginas.” O
documento, de acordo com Zelic, desapareceu depois que o governo baixou o Ato
Institucional nº 5 (AI-5), endurecendo o regime inaugurado pelo golpe de 1964 e
aumentando a perseguição política a seus opositores.
“Nesse relatório estavam contidas as denúncias de
corrupção no SPI [Serviço de Proteção aos Índios], antigo órgão que cuidava da
tutela do índio. E esse relatório continha um estudo realizado pelo
procurador-geral da República com os vários casos de violações de direitos
humanos contra as populações indígenas”, completa.
Funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) na
década de 1970, o índio potiguar José Humberto do Nascimento, conhecido como
Tiuré, foi testemunha de diversas ações dos militares contra os povos
tradicionais. “A política indigenista oficial era de extermínio.”
De acordo com Tiuré, esses povos sempre foram tratados com
descaso, mas o projeto de desenvolvimento do regime, associado a interesses
estrangeiros, intensificou as perseguições. “O índio nunca foi respeitado,
desde a época da colonização, mas não existia um extermínio tão sistemático
como foi na ditadura.”
Tiuré conta ainda que quando percebeu as violências que
eram praticadas contra os povos tradicionais resolveu deixar a Funai e atuar
diretamente na defesa dos interesses das comunidades indígenas. Ele diz que
esteve no sul do Pará, onde encontrou aldeias que eram exploradas em condições
análogas à escravidão na extração da castanha. Segundo Tiuré, alguns militares
se beneficiavam diretamente dessa situação.
Poucos anos mais tarde também presenciou os impactos
negativos dos grandes projetos de infraestrutura, como a construção da
Hidrelétrica de Tucuruí e de estradas que cortavam os territórios índigenas.
Como as comunidades resistiram, Tiuré relata que houve confronto, inclusive com
a prisão e morte de índios.
“O Exército chegava com a parafernalha militar, com
aqueles comboios de jipes, atirando para cima, demonstrando a força que eles
tinham. O confronto era direto, porque os índios enfrentaram. Com isso houve
prisões, tortura, diversas formas de violações.”
Nessa época, Tiuré diz que voltou para a Paraíba, seu
estado natal. Lá participou da resistência dos índios ao avanço da monocultura
da cana-de-açúcar sobre as terras indígenas, impulsionada pela iniciativa
governamental do Proálcool. “Teve confronto, teve morte. Foi nesse momento que
eu fui pego, sequestrado, torturado, colocaram fogo na minha residência”, conta
sobre os confrontos contra a polícia e os capangas das usinas.
Por causa de histórias como essas, Marcelo Zelic defende
que os índios devem ser ouvidos pela Comissão da Verdade. “Os indígenas
precisam participar desse processo, contando o que viveram. Porque essa
impunidade vai perdurar. E o mesmo mal que a impunidade causa nas sociedades
das cidades, ela causa na aldeia”, ressalta.
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