Um dos mais ácidos panfletos da História, contra a
monarquia, é o livro de Étienne de la Boétie, Discours de la Servitude
Volontaire. É texto de um adolescente prodígio, que o redigiu antes dos 18
anos, conforme seu amigo maior, e a quem o autor confiou os originais, Michel
de Montaigne.
Por Mauro Santayana
Étienne morreu aos 33 anos, e Montaigne não se atreveu a
publicar o texto famoso, que ficou conhecido anos depois de sua própria morte.
Redigido no século 16, só no século 17 o livro passou a ser editado e a ser
lido, assim mesmo com muitas cautelas.
La Boétie, no fabuloso talento prematuro, em que se
misturam, ao mesmo tempo, certa ousadia que só a boa fé juvenil autoriza, e
fantástica erudição clássica, pergunta-se por que os homens se submetem à
vontade de um só, sem que nada, nem na natureza, nem na razão, determine essa
submissão.
A monarquia de hoje não é a mesma daqueles séculos, em que
os reis, não todos, mas muitos deles, comandavam seus exércitos e corriam todos
os riscos nas batalhas, como, entre outros soberanos franceses, fizeram
Francisco I e Henrique IV. As famílias reais de nosso tempo estão mais para a
comédia do que para a tragédia; mais para a farsa do que para o drama. Luis 16
foi o último dos reis a ter a sua cabeça decapitada. Antes dele, Carlos I da
Inglaterra, também conheceu o cepo e a lâmina do carrasco. Os Romanov,
dominados por um grande embusteiro, que foi Rapustin, eram de um terceiro tipo,
o de retardados mentais, não obstante a crueldade com que reprimiam seu povo, e
não foram decapitados, mas fuzilados.
Hoje, os poucos príncipes destronados são meros adornos de
festas milionárias. Ninguém se preocupou, nem se preocupa mais, em cortar as
cabeças coroadas, porque elas não valem muita coisa, a não ser a despesa que os
povos pagam, para que encabecem a lista das celebridades inúteis.
Os escândalos da família real espanhola, que estão na
ordem do dia, fermentam novamente a reivindicação republicana na península,
oitenta e um anos depois da abdicação de Afonso XIII. O retorno da monarquia
foi útil ao processo de normalização espanhola, depois da morte de Franco.
Todas as forças políticas aceitaram a fórmula, a fim de evitar nova guerra
civil. Cumprido esse papel positivo, a instituição começa a ser um estorvo. O
rei, neto de Alfonso XIII, nunca aceitou, em sua alma, o regime democrático e,
em fevereiro de 1981, segundo indícios fortes, esteve à frente da conspiração
militar contra o governo democrático, que levou à invasão do parlamento pelo tenente-coronel
Antonio Tejero Molina. O monarca só interveio, com visível contragosto, pela
televisão, depois que a reação dos militares democráticos, no interior dos
quartéis, e o pronunciamento dos governos vizinhos inviabilizaram o golpe.
Agora, os escândalos reais se sucedem. Enquanto o governo
conservador de Mariano Rajoy corta o orçamento social e a Espanha se submete
aos ditados da Alemanha, com o povo em desespero protestando nas ruas,
revela-se que as despesas da Casa Real chegam a quase seiscentos milhões de
euros, incluídos os gastos com as viagens, a manutenção dos numerosos palácios,
a segurança da família do soberano pelas forças armadas e outras despesas
indiretas.
A insensibilidade do Rei diante do sofrimento do povo que
chega, até mesmo, ao escárnio, em certos momentos, como nas caçadas aos
elefantes da África e aos ursos da Romênia, vem retirando a credibilidade de
seus súditos. Tanto nos meios intelectuais, quanto entre os trabalhadores
espanhóis, começa a adensar-se um movimento para o fim do sistema monárquico e
a instauração de uma república democrática.
Ontem, a Espanha foi às ruas, em oitenta cidades, para
protestar contra a aprovação de medidas de arrocho contra os trabalhadores,
entre elas o fim do 13º salário. Em Madri, os bombeiros e os policiais civis,
chegaram a solidalizar-se com os manifestantes, e se opuseram a participar da
repressão. Um grupo, com seus capacetes postos, desnudou-se. Um cartaz
explicava que o governo os deixara “en pelotas”. O clima era o da véspera de
grandes acontecimentos.
As nossas relações com a Espanha monárquica devem ser
reavaliadas. Com todas as suas dificuldades atuais, as elites espanholas
continuam a tratar-nos como se fôssemos colônia de Madri – o que só fomos, e
por acidente histórico, entre 1580 e 1640. Em 1580, depois da morte de D.
Sebastião, no norte da África, e de seu sucessor, o Cardeal D. Henrique, o
trono de Portugal foi ocupado por Felipe II, tio de D. Sebastião. A coroa só
foi recuperada para os portugueses, em 1640, pelo Duque de Bragança.
As grandes virtudes do povo espanhol sempre foram, e
continuam a ser, insultadas pela sua anacrônica, cara e ociosa nobreza, por
nascimento ou pelo êxito nos negócios. E, ao longo de sua história, talvez a
Espanha não tenha tido família real tão insignificante, e tão corrompida como a
de agora.
As dificuldades econômicas da Espanha de hoje são o
resultado desse espírito de presunçosa superioridade de suas elites. Ao entrar
para a Comunidade Econômica Européia, e obter vultosos recursos do grupo, os espanhóis,
em lugar de investi-los no interior do país, usaram-nos para adquirir empresas
na América Latina, principalmente no Brasil. Era uma nova forma de colonialismo
que, apesar do saqueio, manso e “legal” de nossos recursos, principalmente
depois da embasbacada regência de Fernando Henrique Cardoso, não serviu ao povo
espanhol, embora tenha enriquecido muitos banqueiros.
Agora, o próprio genro do Rei é acusado de agir como
criminoso, ao lavar dinheiro mal havido e transferir, só para Luxemburgo, mais
de 700.000 euros. Suspeita-se de que muito mais dinheiro não honrado foi
remetido para o Exterior. Esse genro, Iñaki Undagarin, recebe mais de um milhão
de euros por ano, como conselheiro da Telefónica de Espanha para a América
Latina. E na América Latina, quem contribui com mais lucros para a empresa
espanhola é exatamente o Brasil.
A nossa postura é de solidariedade para com o povo
espanhol. Esse grande povo nada tem a ver com esses señoritos que ainda se
imaginam no tempo de Carlos V e de Felipe II. Estar com o povo espanhol é não
favorecer aqueles que o oprimem.
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