É
quase certo que a semana passada tenha sido decisiva para a História deste século
que se iniciou há dez anos, com os fatos misteriosos de Nova York. A ONU, que não
tem sido mais do que um auditório, espécie de ágora mundial, mas sem o poder
político de que dispunham as praças de Atenas, ouviu quatro discursos
importantes. Dois deles em nome da paz, do futuro, da lucidez e dois outros que
ecoaram como serôdios.
Por
Mauro Santayana, em seu blog
Dilma
e Abbas, em nome dos que não aceitam mais essa divisão geopolítica do mundo;
Netanyahu e Obama, constrangidos porta-vozes de um tempo moralmente morto. A
assembléia geral estava separada em dois lados definidos, ainda que assimétricos.
A
presidente do Brasil falava em nome das novas realidades, como a da emancipação
das mulheres – pela primeira vez, na crônica das Nações Unidas, uma voz
feminina abriu os debates anuais – e a impetuosa emersão de povos milenarmente
oprimidos como agentes ativos da História. Mahmoud Abbas, embora em nome de uma
pequena nação, representou todos os povos oprimidos ao longo dos tempos. Por
mais lhe neguem esse direito, a Palestina é tão antiga que entre suas
fronteiras históricas nasceu um homem conhecido como Cristo.
O
holocausto judaico, cometido pelos nazistas, e que nos horroriza até hoje,
durou poucos anos; o do povo palestino, espoliado de direitos com a ocupação
paulatina de suas terras, iniciada com o sionismo no fim do século 19, dura há
pelo menos 63 anos, desde a criação, ex-abrupto, do Estado de Israel, em 1948.
Recorde-se que a criação de um “lar nacional” para os judeus estava
condicionada à sobrevivência, em segurança, do povo palestino em um estado
independente. A voz de Dilma, mais comedida, posto que representando nação de
quase 200 milhões de pessoas no exercício de sua soberania política, teve a
mesma transcendência histórica do apelo dramático de Abbas. A cambaleante
comunidade internacional era chamada à sensatez política e à consciência ética.
É duvidoso que ela corresponda a essa responsabilidade. Do outro lado, no
discurso dissimulado e ameaçador de Netanyahu e na lengalenga constrangida de
Obama, ouviram-se os rugidos dos mísseis tomawaks e o remoto estrondo que
destruiu as cidades de Hiroxima e Nagasáqui, em 1945. Enquanto Netanyahu
balbuciava, sem nenhuma coerência, as expressões de paz, seus soldados matavam
um manifestante palestino na Cisjordânia ocupada.
Os
dois arrogantes senhores não falaram em nome dos homens; bradaram em nome das
armas e dos grandes banqueiros sem pátria que, desde os Rotschild, mantêm a força
contra a razão naquela região do mundo. Como muitos historiadores já apontaram,
os judeus ricos, sob a liderança da poderosa família de financistas, decidiram
acompanhar o ex-pangermanista Theodor Herzl, na idéia de criar um estado
hebraico, a fim de se livrar da presença constrangedora dos judeus pobres na
Inglaterra e na Europa Ocidental.
Na
origem da sua independência, os Estados Unidos ouviram a constatação sensata de
Tom Payne, de que contrariava o senso comum a dependência de um continente,
como a América do Norte, a uma ilha, como a Grã Bretanha. O governo
norte-americano é hoje refém de um estado diminuto, como Israel, representado
em Washington pelos poderosos lobistas, capazes de influir sobre o Capitólio e
a Casa Branca, contra as razões históricas da grande nação.
Ao
apoiar, vigorosamente, o imediato reconhecimento, pelas Nações Unidas, da
soberania do Estado Palestino, Dilma não falou apenas em nome dos países
emergentes, solidários com o povo acossado e agredido, cujas terras e águas são
repartidas entre os invasores; falou em nome de princípios imemoriais do
humanismo. Ela pôde dar autenticidade ao seu discurso com uma biografia
singular, a de uma jovem que, na resistência contra um regime criado e nutrido
ideologicamente pelos norte-americanos, foi prisioneira e torturada.
A
presidente disse ao mundo que estamos, os brasileiros, trabalhando para que o
Estado cumpra a sua razão de ser, ao reduzir as desigualdades sociais e ampliar
o mercado interno, a fim de desenvolver, com justiça, a economia nacional.
Embora com a prudência da linguagem, exigida pelas circunstâncias solenes do
encontro, o que Dilma disse aos grandes do mundo é que eles, no comando de seus
estados, não agem em nome dos cidadãos que os elegeram, mas das grandes corporações
econômicas e financeiras multinacionais, controladas por algumas dezenas de famílias
do hemisfério norte. O resultado dessa distorção são as crises recorrentes do
capitalismo contemporâneo, com o desemprego, o empobrecimento crescente das nações,
a insegurança coletiva e o desespero dos mais pobres. E os mais pobres não se
encontram hoje apenas nos países do antigo Terceiro Mundo, mas nas maiores e
orgulhosas nações. As ruas de Londres e de Nova York, de Nova Delhi e de São
Paulo são caudais da mesma miséria. Daí a necessidade de que se mude o projeto
de vida em nosso Planeta. Para isso é preciso que as novas nações participem
efetivamente da construção do futuro do homem.
Outro
ponto axial de seu discurso foi o da necessária e urgente reforma da Organização
das Nações Unidas, para que ela se restaure na credibilidade junto aos povos.
Seu sistema decisório, construído na fase crucial da reacomodação do mundo,
depois da tragédia da 2ª. Guerra Mundial, correspondeu a uma constelação
circunstancial do poder, em que as maiores potências, possuidoras da bomba do
juízo final, assumiam a responsabilidade de garantir hipotética paz, mediante o
Conselho de Segurança. Contestado esse superpoder mundial pela consciência
moral dos povos, desde o seu início, há quase duas décadas que se discute a sua
ampliação democrática, mas sem qualquer conclusão efetiva. Dilma expressou a
urgência de que isso ocorra, a fim de que o organismo possa ter a força da
legitimidade política.
A
paz, como a guerra, era, durante a Guerra Fria, um negócio a dois, e que só aos
dois beneficiava. Sua disputa se fazia na periferia do sistema, a partir do
conflito na Coréia, que inaugurou o sistema da divisão entre norte e sul, que
se repetiria no Vietnã e em outros países.
Mais
uma vez, no pacto Wojtyla-Reagan, a Igreja se somava ao dinheiro, para a
aparente vitória do capitalismo, com a queda do muro de Berlim. Isso trouxe aos
vitoriosos a ilusão de que a História chegara a seu fim, com a definitiva
submissão dos pobres aos nascidos para mandar e usufruir de todos os benefícios
da civilização. Como registramos naqueles anos de Fernando Henrique, quando ele
nos fez ajoelhar diante de Washington, os novos mestres do mundo se esqueceram
de combinar com os adversários, como recomendou um filósofo mais atilado, o
mestre Garrincha. A globalização, planejada para consolidar o condomínio dos países
centrais, sob a hegemonia ianque, mediante a recolonização imperial, trouxe o
efeito contrário, promoveu a unidade política dos países atingidos e se voltou
contra seus criadores. Isso explica a emersão do Brics. Foi em nome do futuro,
das novas e poderosas forças humanas que se organizam, que o Brasil falou, por meio
da presidente Dilma, em Nova York.
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