NOVA
YORK (O Globo) - A embaixadora
do Brasil junto à ONU, Maria Luiza Viotti, acaba de passar o bastão no Conselho
de Segurança, onde o país encerrou neste domingo sua participação de dois anos.
O Brasil luta por uma vaga permanente, mas enquanto a reforma do conselho não
vem, aposta suas fichas na coordenação com Índia e África do Sul (com os quais
integra o grupo Ibas) que continuam no órgão.
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Embaixadora do Brasil na ONU - Foto Divulgação |
O
GLOBO: Quais os desafios do Brasil para continuar a ocupar espaço na ONU e no
cenário internacional, mesmo sem a vaga no Conselho de Segurança?
MARIA
LUIZA VIOTTI: Sempre fomos um país que trouxe contribuições à ONU. Embora ainda
tenhamos nossos problemas, fomos capazes de trazer experiências bem-sucedidas,
que foram acolhidas pela ONU e replicadas em outros contextos. O Brasil é um país
democrático, que tem podido promover o desenvolvimento com inclusão social,
criando uma classe média robusta e tendo um novo perfil internacional. Um país
que construiu uma liderança regional e internacional com soft power, como
lembrou o embaixador (dos EUA no Brasil) Tom Shannon, sem armas de destruição
em massa.
Mas
este novo perfil incomoda alguns dos antigos aliados, como países europeus e os
EUA, não?
VIOTTI:
É verdade, e isso é porque nós temos exercido liderança com uma característica
muito própria, com um perfil independente. E isso, de certa maneira, incomoda.
Há uma expectativa de países como os EUA, a França e o Reino Unido, que se
referem ao Brasil como uma grande democracia, que perguntam ao Brasil, à Índia
e à África do Sul, três grandes democracias, por que nós não estamos com eles
em questões de direitos humanos. Há uma certa dificuldade, da parte deles, de
entender que o Brasil não necessariamente se alia a determinadas posições. Por
exemplo, acho que ficou muito claro no caso da Síria, em que o Conselho de
Segurança estava extremamente polarizado (de um lado, os europeus e os EUA; do
outro, China e Rússia), que havia uma expectativa de que o Brasil reforçasse o
lado europeu. Assim como a China e a Rússia esperavam que nós fôssemos mais
para a linha que eles estavam defendendo. E nós nos mantivemos numa posição
diferenciada, dizendo que era importante que o Conselho se manifestasse, que
somos contra violações de direitos humanos. Mas achamos que é preciso uma solução
negociada. Então, foi uma articulação de uma posição intermediária, porque os
países desenvolvidos têm uma única receita para a soluções de conflitos: sanções.
Eles tomam em geral uma posição muito açodada. No caso da Síria, foi essa
articulação que permitiu ao Conselho adotar um consenso pela primeira vez, na
declaração presidencial de agosto. E isso só foi possível porque o Brasil, a Índia
e a África do Sul já tinham se articulado previamente na plataforma Ibas.
Essa
coordenação do Ibas pode continuar em 2012, mesmo o Brasil não estando mais no
Conselho?
VIOTTI:
Acho que ela tende a continuar, porque o Ibas se reúne periodicamente, há
mecanismos regulares de articulação política. Não sei se continuará no
Conselho, isso vai ficar mais difícil com a saída do Brasil, mas eles vão
continuar a nos ouvir.
O
que faz a liga entre esses países, o que une a visão de mundo, em política
externa, de Brasil, índia e África do Sul?
VIOTTI:
O Brasil tem mostrado uma preferência, que coincide com a visão indiana e
sul-africana, por soluções negociadas e diplomáticas para os conflitos. Isso
foi um dos temas centrais da nossa atuação no Conselho. Valorizar também a
contribuição das organizações regionais, como a Liga Africana. Outro elemento
que nos une é pensar a solução de conflitos de forma integrada, que leve em
conta não apenas a dimensão estrita de segurança e soluções militares, mas também
a ideia de promoção de desenvolvimento, criação de empregos, melhoria da
qualidade de vida das populações. A experiência que tivemos no Haiti dá um
conteúdo mais concreto a esse nosso discurso. As missões de paz da ONU geram um
espaço de estabilidade, mas esse espaço não se sustenta se não houver uma série
de ações que fortaleçam as instituições do país.
Mas,
voltando ao caso da Síria, o Brasil foi criticado por permitir ao governo Assad
ganhar tempo. Como foram as pressões dentro do Conselho?
VIOTTI:
Há um ponto de convergência dentro do Conselho em relação à Síria, que é o fato
de que não se antevê a possibilidade de uma intervenção de fora. O
encaminhamento de uma solução só pode se dar por via negociada, pacífica. As
divergências passam a se manifestar quando se discute quais as ações que devem
ser tomadas para encorajar essa solução. Existe essa polarização que eu
mencionava, com os europeus e americanos acreditando em sanções para punir e
isolar.
E
já desde o caso do Irã o Brasil vinha se manifestando contra sanções, não? O
caso do Irã, com a tentativa de negociação de um acordo que incluiu a Turquia,
foi um marco da política externa brasileira?
VIOTTI:
Acho que foi um marco, porque foi uma expressão desse primado das negociações e
do engajamento. O que o Brasil e a Turquia queriam era criar um ambiente de confiança
política que levasse ao diálogo. Mas naquele momento prevaleceu a lógica de sanções,
que enrijeceu posições, que fez com que as divergências se aprofundassem. Foi
uma oportunidade que se perdeu, de tentar alguma coisa diferente, mas foi
marcante.
A
composição do Conselho de Segurança que teve os países do Ibas foi considerada
por analistas uma das mais interessantes dos últimos anos.
VIOTTI:
Os países "grandes" reagiram primeiro de uma forma a mostrar
desagrado com as posições do Brasil, da índia e da África do Sul. Mas, num
segundo momento, eles procuraram entender porque estamos agindo assim, e houve
um momento em que os embaixadores de França e Reino Unido nos convidaram para
almoçar. Foi uma conversa interessantíssima, porque foi uma troca de recriminações.
Eles queriam só o nosso voto, um alinhamento perfeito, e não nos ouviam. A
partir desse almoço, no meio do ano, houve uma dinâmica diferente, eles começaram
a fazer um esforço maior para incorporar nossas posições nas resoluções deles.
Por outro lado, nós começamos a explicitar mais os elementos comuns que há nas
nossas posições, como a preocupação com a defesa dos direitos humanos, com a
proteção de civis. Houve um diálogo melhor, uma compreensão melhor. Ao mesmo
tempo, Rússia e China passaram a valorizar as posições Brics. Criou-se uma
situação em que, quando o Conselho estava muito polarizado, os dois lados
procuravam conquistar o apoio dos países do Ibas. Isso realçou a dimensão de
independência desses países.
Isso
favorece a perspectiva de reforma do Conselho?
VIOTTI:
Se você considerar que a reforma do Conselho depende do voto de dois terços dos
votos da Assembleia Geral, o efeito foi muito positivo. A grande maioria dos países
em desenvolvimento se sente representada nessas posições que o Brasil, a Índia
e a África do Sul assumem. Tivemos retorno muito forte disso. Sem falsa modéstia,
acho que o Brasil teve um papel muito importante de aproximar posições..
Com
a mudança de governo, o que mudou na política externa brasileira e na forma como
ela é vista aqui?
VIOTTI:
Em relação à nossa atuação no Conselho, os grandes princípios, as linhas
gerais, permanecem. Houve mudança de avaliação em um caso ou em outro. E a
presidente tem procurado imprimir sua visão pessoal, tem se interessado pelos temas.
Continuar não é repetir. Há, da parte da presidente, uma preocupação grande em
relação a direitos humanos. Não que ela não existisse antes, mas uma preocupação
em deixar mais claro isso.
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