No
cinquentenário de sua morte, vale (re)ler perfil de pintor que nunca renegou
suas convicções políticas, e as atribuía a algo mais profundo que a razão
Fonte: Outras
Palavras
Uma
agenda extensa de comemorações marcará, em 2012, os 50 anos da morte de Cândido
Portinari, que se completaram em 6 de fevereiro. Em São Paulo, o Memorial da
América Latina exibe, desde ontem, “Guerra” e “Paz” os murais mais famosos do
pintor, cuja instalação permanente é a sede das Nações Unidas, em Nova York.
Eles foram restaurados no ano passado, no Museu Gustavo Capanema, no Rio, em
trabalhos abertos ao público. Outros eventos ocorrerão em diversas cidades do
país.
Há
uma bibliografia razoável sobre o pintor. Entre os livros não-esgotados, uma
excelente opção é o breve — porém denso — perfil produzido pela jornalista
Marília Balbi. Intitula-se “Portinari, o pintor do Brasil” e foi publicado em
2003 pela Editora Boitempo, uma parceira de “Outras Palavras”. Integra a
coleção “Pauliceia”, dirigida por Emir Sader. O trecho — curioso e revelador —
que publicamos a seguir é seu capítulo inicial.
Portinari,
o pintor do Brasil, de Marília Balbi
Aquela
data era aguardada havia muitos anos por todo o mundo. Finalmente, no dia 6 de
setembro de 1957, os gigantes painéis Guerra e Paz foram apresentados nas
paredes do Hall dos Delegados da sede da Organização das Nações Unidas (ONU),
em Nova York. A presença daquela obra monumental ali – na casa que deve zelar
pelo bem-estar de todos os homens da Terra – era obviamente carregada de
sentido. As expressões de dor e esperança pintadas nos dois painéis de 140
metros quadrados simbolizam, de um lado, o flagelo das guerras irracionais e,
de outro, o regozijo da harmonia entre as nações. Dois lembretes para a
eternidade.
Curiosamente,
a cerimônia de inauguração do monumento à humanidade foi discreta, e poucos
foram os convidados. Em especial, um esteve ausente: o autor dos dois painéis,
Cândido Portinari.
Os
tempos eram outros. Os Estados Unidos viviam o auge do macartismo, a doutrina
de proteção americana contra ações supostamente subversivas, cujo expoente
anti-comunista foi o senador Joseph McCarthy. Portinari, por sua vez, era um
declarado comunista e fora candidato à Câmara Federal, em 1945, e ao Senado, em
1947, pelo “partidão”. Duas posturas inconciliáveis nos idos da Guerra Fria.
Por isso, desde os anos 1940, Portinari vinha tendo sua entrada nos EUA negada.
Mas
como manter aquela proibição no momento em que o artista brasileiro,
reconhecido em todo o mundo, tinha sua gigantesca obra em defesa da paz afixada
em caráter permanente na “casa de todas as nações”?
O
mal-estar crescia. Esperava-se uma posição conciliatória do governo americano.
Após a intervenção da diplomacia brasileira, encontrou-se uma solução: bastava
que Portinari solicitasse o visto americano no Brasil e este lhe seria
concedido. Isso não ocorreria. Homem de personalidade forte, Portinari queria
um convite oficial de Washington para pisar em solo americano. Assim era o
homem.
O
episódio envolvendo Guerra e Paz foi apenas mais um constrangimento a que
Cândido Portinari foi submetido durante a vida. Como diversos artistas, ele foi
perseguido, cerceado, estigmatizado pelas posições de esquerda. A polícia
política brasileira, por exemplo, acompanhou seus passos durante décadas. O
Departamento Estadual de Ordem Política e Social – o famigerado Deops –
acumulou notícias a seu respeito até mesmo depois de sua morte, em 1962.
Ele
explicava a quem perguntasse por que se aproximara da política. A Vinícius de
Moraes, confidenciou, em texto publicado postumamente, em março de 1962: “Não
pretendo entender de política. Minhas convicções, que são fundas, cheguei a
elas por força da minha infância pobre, de minha vida de trabalho e luta, e
porque sou um artista. Tenho pena dos que sofrem, e gostaria de ajudar a
remediar a injustiça social existente. Qualquer artista consciente sente o
mesmo”.
Portinari
pintou o povo sofrido, a miséria, o homem de enxada na mão, pés na terra – o
trabalhador brasileiro. Pela primeira vez, um artista expressou a tragédia do
Nordeste do Brasil assolado pela seca. Ou como sintetiza de maneira brilhante
seu único filho, João Cândido, Portinari “fez do pincel sua arma para denunciar
as injustiças e os valores sociais e humanos”.
O
artista começou retratando sua aldeia. Depois, partiu para o universal. Das
crianças brincando na terra roxa em sua natal Brodósqui às crianças dos painéis
da ONU. Temas universais também estão presentes na mulher com o filho morto nos
braços – a Pietà nordestina – e nos horrores da guerra. Visionário e
esperançoso, pintou um judeu e um árabe de braços dados.
As
imagens que ele criou são facilmente reconhecidas por todos. Muitas delas nem
sequer saem de nossa memória. Assim que tentamos conceber a cena de um
trabalhador, imediatamente nos vêm à mente seu estivador, seu lavrador de café,
seu sorveteiro, seu operário, seu lenhador ou ainda o sapateiro de Brodósqui. O
mesmo ocorre com os pobres e miseráveis: de pronto, suas favelas, seus morros e
as figuras esquálidas da série Retirantes nos preenchem a visão.
Reconhecemos
nessas obras nossa gente, nossas dores e nossa esperança – além das marcas
inconfundíveis de um grande artista.
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