Fonte:
Adital
O
prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel, escreveu uma carta ao presidente
Barack Obama em que analisa a atual crise global e a responsabilidade dos
Estados Unidos e de suas políticas armamentistas no contexto internacional. No
texto, intitulado "Se os EUA entrarem em default, a América Latina vai
ajudar", o defensor dos Direitos Humanos oferece apoio para o país sair da
crise.
Nos
primeiros parágrafos, Pérez Esquivel dá as razões para o envio da carta:
"A intenção é tentar 'dar-te uma mão', a partir da América Latina, frente
à crise econômica, política e de valores que atinge os Estados Unidos, a
Europa, a Grécia e outros países do mal chamado 'primeiro mundo'. Sempre afirmei
que somos um só mundo mal distribuído e agora a crise toca aos
intocáveis", disse.
O
prêmio Nobel da Paz avalia a situação econômica dos EUA e se refere ao passado
e ao presente da América Latina. "Vamos esclarecer as coisas, Barack, a
América Latina não pode dar-te crédito algum, está desfalcada graças à
gentileza do FMI e do BM, com suas receitas. O primeiro conselho é que não
aceites receitas de organismos tóxicos."
Esquivel
também criticou os gastos militares norte-americanos, afirmando que as guerras custasm
vidas e provocam fome e violência. Leia abaixo a íntegra da carta, escrita em 5
de setembro.
Barack
Obama: Se os Estados Unidos entram em default, a América Latina ajudará
Estimado
Barack Obama,
Mais
do que uma carta, a intenção é tentar ‘dar-te uma mão' desde a América Latina
frente à crise econômica, política e de valores que atinge os Estados Unidos, a
Europa, a Grécia e outros países do mal chamado "primeiro mundo”. Sempre
afirmei que somos um só mundo mal distribuído e agora a crise toca aos intocáveis.
Como
Fausto que, por um amor, vendeu sua alma ao diabo, o grave é que alguns países
venderam sua alma à Bolsa que os embolsou e lhes reclama o pagamento da dívida
e os juros; semelhante ao Mercador de Veneza que reclama o pagamento da dívida
com uma libra de carne de seu próprio corpo.
Esclareçamos
as coisas, Barack. A América Latina não pode dar-te crédito algum; está
desfalcada graças à gentileza do FMI e do Banco Mundial, com suas receitas. O
primeiro conselho é que não aceites receitas de organismos tóxicos. O que, sim,
podemos fazer é transmitir-te algumas experiências que podem ajudar.
Temos
que aprender a viver com a crise; nós a assumimos quase que como uma irmã mais
velha. Algumas vezes a amamos e, outras vezes, a odiamos; são como problemas de
família.
Temos
que revisar e ver "que o armário de ideias está vazio”, como dizia alguém
cujo nome não recordo; portanto, deves gerar ideias superadoras e aprender os
mecanismos impostos pela dívida externa como instrumento de dominação. Nisso,
vocês são mestres.
Porém,
os latino-americanos sabemos bastante sobre as pragas bíblicas que são
"esse monstro grande que pisa forte toda a inocência das pessoas”, como
canta León.
Heráclito
dizia que nunca nos banhamos nas mesmas águas, apesar de ser o mesmo rio. Tudo
muda. Até teu país, que se cria poderoso amo do mundo, hoje, deve enfrentar a
maior dívida externa do mundo, que deixa aos norte-americanos com a boca aberta
e o bolso tremendo na angústia existencial, quando a Standard & Poor's faz
sinal de negativo nas qualificações, no melhor estilo imperial.
Tenho
que dizer-te que não tenho suficientes dedos nas mãos e nos pés para contar a
dívida de teu país em bilhões, trilhões; cifras que não entram em minha cabeça,
e tento compreender que o impossível é possível.
É
demais para meus neurônios comprovar que o maior credor dos Estados Unidos é a
China "capicomunista” e, entre os mistérios desse legendário país, é saber
como fará para cobrar aos Estados Unidos a dívida externa. Porém, a China
também controla o mercado de metais para alta tecnologia, o que torna os EUA
mais dependentes da China. Tudo isso me parece um ‘conto chinês'.
Me
pergunto: Os chineses terão que convocar aos seus deuses e magos de todas as
dinastias e ao sábio Confúcio, que deve estar bem confuso com o que acontece em
teu país? Quem sabe! Nisso não podemos ajudar-te. O que, sim, podemos, é
ensinar-te o jogo da dívida externa:
1.
Deves saber que as regras são postas pelos que mandam e não por teu país, que
passou a ser membro do clube dos devedores. Portanto: "Bem vindo ao clube
dos devedores!”
2.
No jogo, os credores usam dados viciados e o resultado será sempre o mesmo:
"quanto mais pagas, mais deves e menos tens”. Jogar é uma forma de
fazer-te acreditar que podes ganhar.
3.
Não te desesperes; o jogo vem com surpresas. Estás condenado à perpetuidade,
como o mítico Sísifo: nunca chegarás ao cume; uma e outra vezes deves carregar
o peso da dívida que, passo a passo, pesa mais e mais.
Pega
o lápis, estimado Barack, e anota; porém, não te desesperes; coloca todos os
números que queiras e sempre obterás o mesmo resultado.
Até
o momento, aplicaste um duro programa de ajuste fiscal em gastos sociais,
educação, saúde, alimentação por 2,5 bilhões de dólares e aumentaste o gasto
militar com a cumplicidade do Congresso para elevar o endividamento até 16,4
bilhões de dólares, cifra superior em uns dois bilhões ao PIB de teu país.
Segundo os dados que o politólogo Atilio Borón recolhe em sua nota "Uma
estafa de 16 bilhões de dólares”. Não perderei tempo em colocar dados que já
tens.
Se
continuas com essa loucura, esperando resolver o déficit, é como colocar a
cabeça na guilhotina para que tu mesmo a cortes. Estimado Barack, por favor,
não sejas suicida.
Tenta
encarar políticas públicas a favor de teu povo para evitar que o país pegue
fogo, como está acontecendo na Europa e em outras latitudes, com os
indignados... indignadíssimos...
Em
vez de enfrentar a pobreza, a fome e o desemprego que atinge a mais de 54
milhões de pessoas, envias milhões de dólares para salvar aos que mais têm. São
659 milhões de dólares que foram abonados a instituições bancárias e a empresas
financeiras. Algo cheira mal, Barack, e pode apodrecer.
Teu
governo decidiu continuar aumentando o gasto militar, as bases em diversas
partes do mundo, para promover guerras e conflitos à custa do direito de teu
povo e de outros povos, vítimas de teu país. Se crês que apoiando o complexo
industrial-militar resolverás a crise, chegarás a um ponto sem retorno.
Não
deves esquecer que quem semeia violência recolhe mais violência; teu país
suportando o bumerangue das receitas neoliberais que impuseram a outros povos.
Tens uma possibilidade: nos EUA há pessoas sábias e com ideias que têm
propostas para teu armário vazio e podem ajudar a superar a crise.
Porém,
vamos ao concreto e tentemos visualizar algumas soluções. Como o problema é
muito mais complexo, se necessita ter pensamento holístico:
Quanto
custa aos Estados Unidos a guerra no Iraque?
Teu
antecessor, George W. Bush, mais mentiroso do que Pinóquio, disse que a guerra
no Iraque custaria 50 bilhões de dólares. Os EUA estão gastando essa quantia no
Iraque a cada três meses, como diz o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz:
"Se situamos essa quantidade em seu marco, o resultado é que por uma sexta
parte do custo da guerra dos EUA, seu sistema de seguridade social poderia ser
dotado de uma sólida base econômica durante mais de meio século, sem reduzir as
prestações sociais e nem aumentar as contribuições”. Mais claro, impossível.
Quanto
custa uma bomba que teu exército e teus aliados detonam sobre a Líbia, o Iraque
e o Afeganistão?
Te
recordo que 146 entidades financeiras de 16 países investiram e prestaram
serviços financeiros pelo valor de 43 bilhões de dólares para fabricar bombas
de fragmentação entre os anos de 2007 e 2009.
Um
míssil Trident DII5, de longo alcance, pode transportar uma cabeça nuclear e
seu custo é de 30.9 milhões de dólares. A empresa Lockheed Martín é a
contratista ganhadora a um custo de 789,9 milhões de dólares.
Quanto
custa um tanque de guerra e um avião de combate?
Anota,
Barack, pára não esquecer e soma as cifras inimagináveis para promover a morte
e a destruição.
Outra
pergunta: Te povo sabe quanto o governo gasta em guerras que desencadeiam em
diversas partes do mundo e para onde vão os impostos que pagam?
O
AH-Apache, usado pelos Estados Unidos no Iraque, é um helicóptero de ataque
utilizado pelos britânicos, por Israel, pelo Japão e outros; o custo do
programa foi de 10 bilhões e 500 milhões de dólares. O custo de despegue é de
18 milhões de dólares e o custo de compra da versão AH-64D, em 2003, era de 56
milhões de dólares.
Aqui
vem o prato principal: Segundo a TIME, na lista de 2009, um simples caça de
combate costa 94 milhões de dólares e soma até o poderoso e letal bombardeio
avaliado em 2.400 milhões de dólares o B-2 SPIRIT.
Nem
falar dos porta-aviões que entram no imaginário do incrível; porém,
dolorosamente certo, como a classe NIMITZ, que alcançam por unidade os 4.000
milhões de dólares; que necessita um equipamento anual de 150 milhões de
dólares. Isso sem contar os 80 aviões que podem aumentar sua capacidade até
100.
Me
cansei, Barack; estou esgotado com tanta loucura e irresponsabilidade...
Necessito respirar.
Porém,
temos que continuar. Outras medidas que podes utilizar para reduzir o déficit
de teu país –medidas que prometeste; porém, não cumpriste- é fechar as prisões
de Abu-Graib (Iraque) de Guantánamo (Cuba). E levantar o bloqueio a Cuba e
liberar aos cinco cubanos que manténs presos por mais de 10 anos. Isso permitiria
que teu país economizasse milhões de dólares. Me diz, Barack: Quanto custa ao
teu país o salário dos torturadores, assassinos e carcereiros formados na
Escola das Américas, que, mesmo tendo mudado de nome, continua usando os mesmos
métodos?
O
problema mais grave que atinge ao teu país é o medo. Medo dos demais e medo de
si mesmo. Porém, se empenha em aferrar-se ao salva vidas de chumbo e inventa
mecanismos de segurança que torna a vida mais insegura e angustiante. O
orçamento militar de teu país para 2011 supera os 700 bilhões de dólares.
As
guerras, o petróleo, os minérios, a água, o poder político e econômico custam
milhares de vidas humanas; provocam fome e violência. Porém, para os que
mandam, negócios são negócios; e a humanidade passa a ser uma abstração.
Hoje
é a Líbia; a guerra pelo petróleo. Amanhã? Será pela água, pelos recursos e
bens naturais? Quem sabe! O que, sim, sabemos é que estás hipotecando o
presente e destruindo o futuro de teu povo e de outros povos do mundo.
Não
podemos continuar lamentando a situação em que vivemos; devemos construir na
esperança. Te proponho o seguinte:
Doa
o valor de um dos aviões de combate e, como dizia Raoul Follereau, poderás ver
quantos hospitais, escolas e empregos dignos podem ser construídos para os povos.
Com
o valor de uma das bombas que teu exército joga sobre o Iraque, o Afeganistão
ou a Líbia podem ser construídos centros de saúde e dar de comer e educar a
milhões de crianças, que te oferecerão um sorriso e esperança de vida.
Se
fossem somados todos os milhões investidos para a morte, quanto mais teu país
poderia fazer para a vida de teu povo e da humanidade? Poderias pagar a dívida
externa e interna.
Minha
saudação de Paz e Bem.
Adolfo
Perez Esquivel
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