Quando
a ditadura foi instaurada no Brasil, Márcio Borges, o segundo filho de uma
grande família de 11 músicos, era ainda um menino. Em 1964, aos 18 anos de
idade, ainda não escrevia versos para as composições de Milton Nascimento.
Aliás, nem mesmo as próprias músicas existiam: “Bituca” – apelido de Milton na
época – estava em um curso pré-vestibular, estudando para tentar uma vaga no
curso de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Fonte:
Carta Capital
Na
esquina da Rua Divinópolis com a Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em
Belo Horizonte, não havia clube algum. Sem saber que poucos anos mais tarde
seria o responsável pelas estrofes de clássicos como Clube da Esquina, Um girassol
da cor de seu cabelo e Os Povos, Márcio Borges preenchia seus dias com uma
quantidade considerável de idas ao cinema, batidas de limão, conversas
infinitas com amigos pelos corredores do Edifício Levy – prédio onde morava com
pais e irmãos – e o cotidiano da Escola Estadual Central. No mesmo período, lá
também estudava a hoje presidenta Dilma Rousseff.
Dilma
e Márcio nunca foram da mesma classe. Os dois se conheceram por amigos em comum
do colégio estadual. Na época, a instituição era um pólo político e cultural da
capital mineira – por lá também passaram os irmãos Henfil, Toninho Horta,
Fernando Pimentel entre outras figuras célebres da história do Brasil – como
Getúlio Vargas, Fernando Sabino e ex-jogador Tostão. “Todo mundo que estudava
no Central era engajado com causas sociais, com a política, fazíamos oposição à
ditadura. Foi lá que se consolidou o movimento estudantil da cidade”, conta
Márcio Borges.
Nas
décadas de 60 e 70, o Estadual Central era sinônimo de referência em educação.
Até os herdeiros das elites eram alunos – estudar lá era garantia de acesso à
UFMG. O prédio, sem muros, arquitetado por Oscar Niemeyer, abrigava uma lógica
incompatível com a opressão da ditadura: havia liberdade de expressão, os
estudantes podiam matar aulas, namorar e fumar nos bancos da escola. “Nós
tínhamos abertura para reivindicar, expressar nossas ideias e isso incentivava
nosso lado criativo”, afirma o letrista.
A
amizade entre ele e a futura presidenta se consolidou do lado de fora do
colégio. Os dois se conheceram no Bar do Bucheco, o QG predileto da turma. Foi
um dos primeiros bares em Minas Gerais a ser frequentado por meninas. “Era um
bar despojado, pequeno, esfumaçado. Não tinha balcão. Eram poucas mesas, com
cadeiras improvisadas com caixotes de madeira e uma vitrola velha”, lembra.
O
famoso Colégio Estadual Central, onde estudaram Dilma Rousseff, Macio Borges e
outras personalidades. Foto: Colégio Estadual Central
Um
rapaz chamado Dickson foi quem os apresentou. Ele era mais velho, um dos
intelectuais da turma, falava bem sobre política, cinema e literatura. “Todo
mundo no Bucheco gostava de conversar sobre cultura e filosofia”, conta o
compositor.
Dilma
já apresentava mais interesse pelas questões políticas. Logo que entrou no
Estadual Central, em 1964, ingressou na Polop – Política Operária -, movimento
de esquerda cujas reuniões tinham como sede o próprio Bucheco.
Márcio
gostava mesmo era de cinema. Gostava de Godard e defendia com ênfase a ideia de
que os filmes do diretor francês eram sempre os melhores. Por isso, ganhou o
apelido de “Marcinho Godard”. A alcunha foi lembrada por Dilma em 2010: ela o
chamou assim quando eles se encontraram durante a campanha para as eleições
presidenciais.
Além
do Bucheco, os membros da turma também eram fieis frequentadores da Pensão da
Dona Odete, onde filavam de graça bons pratos de comida.
O
Edifício Maletta, no centro de Belo Horizonte, era outro ponto de encontro. Até
hoje a maior parte dos apartamentos do prédio é composta por repúblicas de
estudantes. Cláudio Galeno, namorado de Dilma na época, era um dos moradores.
“Apesar de todas as questões políticas, da censura, da opressão, nós éramos
felizes. Eu ia à casa de Dilma roubar cerveja da geladeira dos Rousseff, ela
também frequentava a minha casa”, diverte-se Márcio Borges.
Encontro
de Minas com a então candidata à Presidência Dilma Rousseff. Foto: Roberto
Stuckert Filho.
Após
o decreto do Ato Institucional nº5 e o endurecimento da ditadura, aos poucos
Márcio passou a ver seus amigos partirem para o exílio ou para as guerrilhas,
como foi o caso de Dilma.
“Nós
sempre nos ajudávamos muito, eu só não entrei para a Polop porque acabei imerso
no mundo da música”, analisa.
Em
1968, ano do AI-5, ele já havia escrito as letras de Canção do Sal e Gira Girou
para as composições de Bituca.
Desde
então muitas coisas já mudaram. Os tempos são outros: a ditadura acabou, o bar
do Bucheco já não existe. A estudante politizada virou presidenta da República
e o jovem compositor marcou história no cenário musical.
Mas
são histórias de amizade e companheirismo como essa que serviram de
matéria-prima e deram motivação para que, em 1972, o Clube da Esquina fosse
gerado. “Foram bons tempos”, conclui Borges.
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