Proposta de uma cartografia construída ativamente pelas
diferentes comunidades tradicionais do Brasil a partir de suas culturas e
concepções de espaço pretende dar visibilidade à diversidade do país e
estimular o uso dos conhecimentos populares na luta contra a pobreza.
Por Marcelo Garcia, na Ciência Hoje
Tradicionalmente, os censos brasileiros realizados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificam a população
dentro de cinco categorias étnicas: brancos, pardos, negros, índios e amarelos.
É claro que essa metodologia, cujas bases foram introduzidas no país ainda no
século 18, tem sua utilidade, mas está longe de refletir a grande diversidade
de nosso povo.
A aplicação de uma cartografia social, baseada no
conhecimento das muitas comunidades tradicionais espalhadas pelo território
nacional, pretende expressar exatamente essa diversidade. Ao dar aos próprios
membros desses grupos o poder do mapeamento de seus territórios, a abordagem os
coloca no papel de protagonistas de sua própria identidade. Os mapas dessa nova
cartografia refletem o entendimento dessas pessoas sobre o próprio território e
a relação de sua cultura com esse espaço.
Os mapas dessa nova cartografia refletem o entendimento
das pessoas sobre o próprio território e a relação de sua cultura com esse
espaço. O principal trabalho desse tipo realizado no Brasil, o Projeto Nova
Cartografia Social da Amazônia, foi apresentado na terça-feira (24) pelo
antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, da Universidade do Estado do
Amazonas, em palestra promovida pelo Instituto Ciência Hoje na 64ª Reunião
Anual da SBPC.
O pesquisador mostrou alguns dos materiais produzidos pelo
projeto, que tem atuado em parceria com comunidades tradicionais – quilombolas,
pescadores, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, cipozeiros, entre outras
– espalhadas pela maioria dos estados brasileiros. O trabalho já gerou cerca de
150 fascículos com mapas sobre diferentes comunidades, além de 15 filmes, 30
livros e 13 exposições.
Almeida vê a cartografia social como um recurso para
auxiliar e dar mais precisão ao discurso da etnografia e da antropologia. Suas
principais preocupações passam tanto pela compreensão do patrimônio cultural
desses povos quanto pela forma como essas pessoas definem suas próprias
identidades e territórios.
“O antropólogo Benedict Anderson inclui o mapa, o censo e
o museu como três das principais bases para a ideia de nação, ao materializar o
território, sua população e sua respectiva cultura”, citou Almeida. “Hoje, o
Estado perdeu o monopólio desse mapeamento e temos a oportunidade de promover
uma reconstrução dessa nação, de forma menos monolítica, mais complexa e
socialmente mais inclusiva, capaz de refletir melhor a diversidade existente.”
Conheçam-se a si mesmo
A criação de todo esse material conta com a participação
intensa e decisiva das próprias comunidades mapeadas. Os pesquisadores ensinam
a membros escolhidos pela comunidade noções básicas de legislação ambiental e
da utilização de GPS eArcGIS (programa de computador utilizado para produção de
mapas). É esse grupo de parceiros que decide o que será mapeado, de acordo com
aquilo que sua própria cultura e tradição consideram relevante.
O mapeamento é realizado por eles mesmos, assim como a
produção de fotos e vídeos. Os mapas elaborados são, então, aprovados pelas
comunidades, que também escolhem as colorações e os ícones personalizados que
melhor representem sua visão do território. Um detalhe: segundo Almeida, o
mapeamento parte sempre de um convite da comunidade para entender melhor
questões locais, nunca é imposto.
O antropólogo destacou que o projeto traz benefícios para
as comunidades tanto em aspectos identitários quanto em novas possibilidades
para enfrentar a pobreza. “A elaboração desses mapas é uma valorização inédita
do conhecimento e da cultura desses grupos e uma prova de que é possível formar
bons pesquisadores fora dos grandes centros”, avaliou. “Isso poderá contribuir
para modificar a própria comunidade científica nacional e representa uma
aplicação do saber tradicional como ferramenta para superar a pobreza.”
“É uma valorização inédita do conhecimento e da cultura
desses grupos e uma prova de que é possível formar bons pesquisadores fora dos
grandes centros”. Para Almeida, o Brasil está passando por uma transição na
valorização das culturas tradicionais. “Ao mesmo tempo em que o governo federal
reconhece os povos e comunidades tradicionais, associados ao desenvolvimento
sustentável e a uma expectativa de direito territorial, uma portaria publicada
neste mês desrespeita diretamente os mesmo direitos territoriais dos
indígenas.”
O pesquisador deixou claro que o projeto não pretende ser
uma resposta final a essas questões e muito menos um modelo a ser aplicado
indefinidamente no Brasil. “Na verdade, nossa iniciativa é um exercício que tem
levantado mais indagações do que respostas, mas que tem papel relevante ao
promover a problematização da questão territorial e cultural desses grupos”,
avaliou.
A diversidade na prática
A questão da territorialidade é aguda em todo o país e
envolve mais do que o espaço físico, mas os modos de viver e entender
território inerentes a diversas culturas. “Por exemplo, recentemente,
comunidades de ribeirinhos do rio Japeri, na região amazônica, perderam sua
classificação como pescadores artesanais por também se dedicarem à caça e ao
extrativismo; só os pescadores comerciais mantiveram sua autorização para
pesca”, pontuou. “Trata-se de uma clara confusão entre identidade e atividade
econômica, que descredenciou aqueles que detinham o conhecimento local e afetou
a biodiversidade da região.”
A questão torna-se ainda mais complexa pela dificuldade de
se estabelecer uma definição para a identidade desses grupos tradicionais. Os
povos faxinais, por exemplo, que ocupam o sul do Brasil, são uma mistura de
ucranianos, poloneses, italianos, índios e quilombolas que não compartilham a
mesma língua e não têm as mesmas crenças, mas enxergam a si mesmos como um povo
único. “É preciso entender o critério que liga as pessoas em cada um desses
grupos, como são estabelecidos os laços das próprias comunidades”, avaliou.
É preciso entender o critério que liga as pessoas, como
são estabelecidos os laços das próprias comunidades. Outros exemplos
interessantes são os cerca de 196 mil pomeranos do Brasil, um povo que não
existe mais nem em seu continente de origem, a Europa, e a reivindicação da
identidade indígena kuntanawa feita por um grupo de seringueiros do Acre. “A
formação das identidades dos grupos tradicionais e seus aspectos territoriais
são questões complexas e sujeitas a mudanças”, reafirmou. “Por isso, um
mapeamento como esse é rico e pode ajudar, inclusive, no estabelecimento de
políticas públicas em estados como o próprio Maranhão, que tem o pior Índice de
Desenvolvimento Humano do país”, concluiu
Fonte: O outro lado da notícia
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