8.10.11
Postado por
Sávio Hackradt
Foi
uma honra, para mim, ter sido convidada a falar em Occupy Wall Street na
5ª-feira à noite. Dado que os amplificadores estão (infelizmente) proibidos, e
o que eu disser terá de ser repetido por centenas de pessoas, para que outros
possam ouvir (o chamado “microfone humano”), o que vou dizer na Praça Liberty
Plaza terá de ser bem curto. Sabendo disso, distribuo aqui a versão completa,
mais longa, sem cortes, da minha fala.
Occupy
Wall Street é a coisa mais importante do mundo hoje[1]
Eu amo vocês.
E eu não digo isso só para que
centenas de pessoas gritem de volta “eu também te amo”, apesar de que isso é,
obviamente, um bônus do microfone humano. Diga aos outros o que você gostaria
que eles dissessem a você, só que bem mais alto.
Ontem, um dos oradores na
manifestação dos trabalhadores disse: “Nós nos encontramos uns aos outros”.
Esse sentimento captura a beleza do que está sendo criado aqui. Um espaço
aberto (e uma ideia tão grande que não pode ser contida por espaço nenhum) para
que todas as pessoas que querem um mundo melhor se encontrem umas às outras.
Sentimos muita gratidão.
Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise.
Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que
fazer: eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de
políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar
os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder
corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo.
Só
existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante
grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para
dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.
Esse slogan começou na
Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a
esta milha quadrada onde a crise começou.
“Por que eles estão protestando?”,
perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta:
“por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam
aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”.
Muitos já
estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os assim chamados
protestos anti-globalização que conquistaram a atenção do mundo em Seattle, em
1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, global e juvenil fez
mira direta no poder das corporações. Tenho orgulho de ter sido parte do que
chamamos “o movimento dos movimentos”.
Mas também há diferenças importantes.
Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do
Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias
por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios
também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na
histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de
setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte.
O
Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não
estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só
quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da
era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem
rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo
prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados.
Ser
horizontal e democrático é maravilhoso. Mas esses princípios são compatíveis
com o trabalho duro de construir e instituições que sejam sólidas o suficiente
para aguentar as tempestades que virão. Tenho muita fé que isso acontecerá.
Há
outra coisa que este movimento está fazendo certo. Vocês se comprometeram com a
não-violência. Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines
quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa
tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a
brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na
noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce. Mais
sabedoria.
Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999,
encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego
era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela
época, tudo era empreendimento, não fechamento.
Nós apontávamos que a
desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os
padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações
eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas,
para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta
contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender,
pelo menos nos países ricos.
Dez anos depois, parece que já não há países
ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza
pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo.
A questão é que
hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada
vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E
está detonando o mundo natural também. Estamos sobrepescando nos nossos
oceanos, poluindo nossas águas com fraturas hidráulicas e perfuração profunda,
adotando as formas mais sujas de energia do planeta, como as areias betuminosas
de Alberta. A atmosfera não dá conta de absorver a quantidade de carbono que
lançamos nela, o que cria um aquecimento perigoso. A nova normalidade são os
desastres em série: econômicos e ecológicos.
Estes
são os fatos da realidade. Eles são tão nítidos, tão óbvios, que é muito mais
fácil conectar-se com o público agora do que era em 1999, e daí construir o
movimento rapidamente.
Sabemos, ou pelo menos pressentimos, que o mundo está
de cabeça para baixo: nós nos comportamos como se o finito – os combustíveis
fósseis e o espaço atmosférico que absorve suas emissões – não tivesse fim. E
nos comportamos como se existissem limites inamovíveis e estritos para o que é,
na realidade, abundante – os recursos financeiros para construir o tipo de sociedade
de que precisamos.
A tarefa de nosso tempo é dar a volta nesse parafuso:
apresentar o desafio à falsa tese da escassez. Insistir que temos como
construir uma sociedade decente, inclusiva – e ao mesmo tempo respeitar os
limites do que a Terra consegue aguentar.
A mudança climática significa que
temos um prazo para fazer isso. Desta vez nosso movimento não pode se distrair,
se dividir, se queimar ou ser levado pelos acontecimentos. Desta vez temos que
dar certo. E não estou falando de regular os bancos e taxar os ricos, embora
isso seja importante.
Estou falando de mudar os valores que governam nossa
sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação
digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas ela não é
menos urgente por ser difícil.
É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na
forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros,
compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de
meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz “eu
me importo com você”. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o
olhar das outras, para dizer “deixe que morram”, esse cartaz é uma afirmação
profundamente radical.
Algumas ideias finais. Nesta grande luta, eis aqui
algumas coisas que não importam:
Nossas roupas.
Se apertamos as mãos ou
fazemos sinais de paz.
Se podemos encaixar nossos sonhos de um mundo melhor
numa manchete da mídia.
E eis aqui algumas coisas que, sim,
importam:
Nossa coragem.
Nossa bússola moral.
Como tratamos uns aos
outros.
Estamos encarando uma luta contra as forças econômicas e políticas
mais poderosas do planeta. Isso é assustador. E na medida em que este movimento
crescer, de força em força, ficará mais assustador. Estejam sempre conscientes
de que haverá a tentação de adotar alvos menores – como, digamos, a pessoa
sentada ao seu lado nesta reunião. Afinal de contas, essa será uma batalha mais
fácil de ser vencida.
Não cedam a essa tentação. Não estou dizendo que vocês
não devam apontar quando o outro fizer algo errado. Mas, desta vez, vamos nos
tratar uns aos outros como pessoas que planejam trabalhar lado a lado durante
muitos anos. Porque a tarefa que se apresenta para nós exige nada menos que
isso.
Tratemos este momento lindo como a coisa mais importante do mundo.
Porque ela é. De verdade, ela é. Mesmo.
[1] Discurso originalmente publicado no The Nation
Tradução para o português do Brasil, de Idelber Alvelar, da Revista Fórum
Estação Música Total
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