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Sávio Ximenes Hackradt

30.10.11


O Brasil vive desde sua independência um processo contraditório no que diz respeito a sua memória. Na afirmação da nação emergente, consolidou-se uma história oficial, donde todos os atos de violência foram ou glorificados ou relegados ao esquecimento.
Por José Eduardo Cardozo e Paulo Abrão, na Folha de SP*
Esse processo foi eivado por um viés elitista, marcado por duas características: uma leitura histórica sob a perspectiva dos países centrais e uma tradição narrativa que assume as versões oficiais dos vencedores e colonizadores.
Apenas muito recentemente o Estado passou a enfrentar, de maneira aberta, as sequelas de seu passado de violações "esquecidas".
Os fatos desvelados pelas Comissões de Mortos e Desaparecidos e da Anistia, a partir da oitiva das vítimas, confrontaram a versão dos "vencedores", registrada nos documentos oficiais da ditadura, formulados para encobrir torturas e execuções. As comissões de reparação assentaram uma narrativa plural, que buscou contemplar a perspectiva dos (outrora) vencidos, juntando-se a uma nova tradição memorialística, de revelação do legado dos regimes autoritários.
O Brasil finalmente começou a buscar sua história negada, enfrentando crítica recorrente dos relatórios dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos nos últimos 20 anos: a de que, em seu acerto de contas com o passado autoritário, não tenha estabelecido mecanismos de revelação da verdade histórica e construído espaço de memória e homenagem às vítimas das violações.
Duas medidas surgiram para superar essa crítica. Dando sequência às iniciativas do governo Lula, o governo da presidenta Dilma empenhou sua agenda política em torno da aprovação da Comissão da Verdade e da construção do Memorial da Anistia Política no Brasil.
A lei que institui a Comissão da Verdade possui muitas qualidades.
A primeira delas, a de suprir a lacuna jurídica quanto à positivação do direito à verdade como direito fundamental do brasileiro.
A segunda, a de possuir poderes para levar a cabo um trabalho inédito, tendo equipe com dedicação exclusiva e integral para sistematizar todas as graves violações de direitos humanos (e sua autoria) por meio de um amplo processo de escuta pública e coleta documental.
Poderá ainda propor medidas e reformas institucionais para prevenir futuros crimes contra a humanidade. É inegável a relevância política de tal Comissão nascer com o apoio de todos os partidos, o que lhe confere autoridade para transpor um ambiente de negação histórica e permite tratar dos temas mais dolorosos da pátria de maneira legítima e plural.
Paralelamente, o Memorial da Anistia será um equipamento público de consciência, reparação e memória, além de homenagem aos que lutaram contra a ditadura.
A memória tem papel decisivo para impedir que a intolerância e a injustiça se banalizem e que a barbárie se repita.
Essas medidas agregam-se à agenda da transição política de todos os governos civis e Parlamentos pós-redemocratização.
Sarney extinguiu a censura e desfez os organismos de repressão; Collor acabou com o SNI e aprovou uma primeira lei de acesso a arquivos; Fernando Henrique criou as Comissões de Anistia e sobre Mortos e Desaparecidos; Lula inovou com as Caravanas da Anistia, o livro "Direito à Memória e à Verdade" e com a abertura de arquivos pelo projeto Memórias Reveladas.
No Brasil de hoje, os direitos humanos devem ser vistos como uma precondição para um desenvolvimento social pleno.
Na nova geopolítica global, a vocação de líder de nosso país avança. Não só na perspectiva econômica, mas também na humanística. Nada mais legítimo e oportuno que a construção da nossa identidade seja agora forjada a partir de uma memória da defesa da liberdade.
José Eduardo Cardozo é ministro da Justiça.
Paulo Abrão é secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia.

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