15.5.11
Postado por
Sávio Hackradt
Aos 64 anos, Camille Paglia está preocupada com o futuro das artes. Para ela, a ligeireza da internet empobrece a criação. E os jovens, sugados pela web, ignoram as grandes referências artísticas.
Eleonora de Lucena
- Folha de São Paulo
Polemista vigorosa, ela diz estar entusiasmada com a música brasileira. Quer fazer uma campanha para criar um canal específico sobre isso nos EUA. No momento se delicia com a descoberta de Elis Regina.
Mais serena, ela se arrepende de ter sido muito arrogante no passado. Nesta entrevista, a intelectual especializada em letras e artes e famosa por suas análises sobre sexo e cultura fala sobre aborto, feminismo, união homoafetiva. E desabafa sua frustração com Obama. Votou nele, mas está desiludida com a crise econômica, que leva "professores ao desemprego de costa a costa". Discorre sobre a polarização na sociedade norte-americana e afirma que a cena política está envenenada.
Ela estará no Brasil nos próximos dias para um debate sobre jornalismo cultural.
Folha - Qual foi a sua reação à morte de Osama Bin Laden? Haverá mudanças na chamada "guerra ao terror"?
Camille Paglia - Fiquei muito surpresa de ver multidões celebrando a morte dele. Células terroristas são descentralizadas e estão por toda parte. Achei a celebração nas ruas naïve. Os jovens na frente da casa branca em horário tão tardio com todas aquelas bandeiras americanas? De onde elas vieram? Não há lugar para comprar bandeiras naquela hora. Pareceu uma demonstração política orquestrada pela Casa Branca. Isso me preocupa. Não gosto do cheiro de manipulação. E o episódio não foi bem conduzido pelo governo. Eu apóio Obama e votei nele, mas seu staff e seus assessores são muito ruins e ele seguidamente tem problemas. Os jovens talvez não entendam que a eliminação não resolve os problemas de terrorismo no mundo.
A operação que não foi bem conduzida?
Eu preferiria que ele tivesse sido capturado e levado a julgamento de acordo com as leis internacionais. Houve muita confusão nas informações iniciais, dizendo que ele estava armado. As mudanças de versão são sinais de incompetência dos seus assessores. É absurdo. Na minha visão, é provavelmente inapropriado expor a foto do corpo de uma pessoa morta com um tiro na cabeça. Mas o que a administração Obama deveria ter feito no início era reunir lideranças do Congresso e da política e mostrar a foto em recinto fechado para que, depois, eles relatassem para o público. Em vez desse caos, onde não há provas. É como um filme ruim, um melodrama desnecessário sobre um incidente tão importante.
Mas a sra. acredita que o mundo está mais seguro agora?
Não. Há uma nova geração de jihadistas no mundo. Há uma enorme oposição ao Ocidente. Estamos no meio de uma enorme mudança cultural no mundo. A tecnologia moderna se tornou tão elaborada, tão fria e tão distante dos valores espirituais que há esse desejo de destruir. Vemos isso na história, no mundo antigo. Jesus e sua geração de jovens falavam de apocalipse, estavam na oposição do que eles enxergavam ser o mundo decadente, de prazer, na estrutura de poder do império romano. O problema hoje é que os jovens jihadistas têm acesso a armas destrutivas e causam caos. Nossa civilização é extremamente complexa e dependente de comunicação. A eficiência de todos os nossos sistemas, de transportes, de abastecimento, de água [depende de comunicação]. É muito fácil...
O sistema é vulnerável?
Sim. Estamos muito mais vulneráveis do que o império romano na época de Jesus. Um jihadista pode pegar um avião e voar para os EUA. Eu não acho que o mundo está mais seguro agora. Mas há um sentimento de fechamento. É simbólico. Mas eu, pessoalmente, teria preferido que ele tivesse sido capturado.
Qual sua opinião sobre Obama nas diferentes áreas do seu governo (política, economia, internacional)?
Ele não está indo bem em nenhuma área. Não há área onde ele tenha realizado algo, com exceção desta [assassinato de Osama]. É a primeira. Uma das principais razões pelas quais eu votei nele é que eu queria que nossas tropas se retirassem do Oriente Médio. Eu fui contra a guerra no Iraque, mesmo antes de começar. Fiz uma coluna no tempo em que a mídia americana estava aceitando totalmente as mentiras oficiais. A mídia americana é extremamente naïve e, diferentemente da BBC e do jornalismo europeu, nunca questionou as autoridades. Aceitaram a história das armas de destruição em massa sem nenhuma evidência, aceitaram com pura fé religiosa. Quando eu votei em Obama achei que estava votando por mudanças, pela retirada de nossas tropas. Em vez disso, parecemos viciados em guerra. Eu não aprovo a ação na Líbia também. De uma hora para outra a Otan é envolvida nos bombardeios à Líbia. De repente Obama diz que Gaddafi é mau. Gaddafi é um homem mau, mas, apesar de tudo... É absurdo. Como um videogame. Acho que as pessoas têm uma visão de videograme sobre política. Num momento em que o país está sofrendo economicamente. Temos uma crise terrível aqui. Professores estão sendo despedidos em escolas públicas de costa a costa. Temos uma enorme crise orçamentária aqui, que está produzindo caos na educação. E o que estamos fazendo? Estamos nos envolvendo em guerras atrás de guerras, onde não temos nada a ver. Eu aprovo guerras justas. Achei justo os EUA entrarem na Segunda Guerra Mundial para derrotar Hitler. Estou muito desapontada com Obama por causa disso.
Outra coisa é a grande necessidade de uma reforma na saúde. Meu partido, o Democrata, cuidou mal do caso. Então estamos com essa enorme lei da saúde que ninguém leu. Nem os congressistas que votaram leram tudo. Cheia que intervenções na nossa vida, cheia de burocracias. Toda a coisa foi ridícula. Dveria ter sido menor, pequenas mudanças levando a mudanças maiores. Mas eles forçaram. Agora a repulsa à lei é um tema da próxima eleição. Acho que a maioria das pessoas concorda que ele [Obama] nada sabe sobre economia. Ele não parece estar fazendo alguma coisa.
A sra. identifica alguma diferença entre Obama e Bush?
Ele simplesmente continuou muitas políticas de Bush. Há uma conversa aqui se haverá uma disputa entre os democratas para as próximas eleições. Nader está falando. Há muitos rumores sobre Hillary Clinton.
Mas Hillary se sairia melhor que Obama?
Não necessariamente. Estamos observando. Hillary está aguardando para ver se Obama ficará enfraquecido de alguma forma. Ela é mais sofisticada sobre o mundo, ganhou mais experiência sendo secretária de Estado. George Bush pai não foi reeleito por causa da entrada de um terceiro nome, Ross Perot. Clinton nunca teria sido eleito se Ross Perot não tivesse entrado e tirado muitos votos do velho Bush. Essa é a incerteza sobre o próximo ano. Talvez haja divisões nos dois partidos. Se o indicado pelos republicanos não for tão conservador...
Como quem?
Mitt Romney por exemplo. Ele tem grande chance de, se for indicado, obter muitos votos de independentes e de democratas. Foi governador de um estado bem liberal --Massachusetts-- e apoiou a reforma no sistema de saúde. Ele é um homem de negócios muito sofisticado. Mas ele é mórmon, o que é muito ofensivo para os cristãos republicanos. Além disso ele tem sido ambíguo sobre aborto, ao que eles se opõem. Eles acham que o candidato republicano à presidência deve ser pró-vida e anti-aborto. Se Mit Romney for indicado pelos republicanos, é possível que haja uma divisão na direita. E provavelmente haverá um candidato religioso mais de direita. É possível que quem quer que seja indicado pelos dois lados os votos sejam ser trocados pelos oponentes
Donald Trump e Sarah Palin são apenas piadas?
Foi surpreendente como Donald de repente subiu para o topo das pesquisas em New Hamphire. Mas ele veio do nada e se ofereceu como candidato e subiu dessa maneira em pesquisas. Isso mostra como há infelicidade lá. Não apenas contra Obama, mas também em relação ao partido Republicano. As lideranças republicanas são extremamente ineptas, não têm nada para se opor às políticas de Obama. A verdadeira oposição a Obama é local, de direita e vem dos talk shows. Eu escuto muito rádio e acompanho isso. A liderança republicana em Washington parece incompetente. Muitas vezes os democratas ganharam não pelas suas virtudes, mas pela incompetência dos opositores republicanos. Os republicanos frequentemente indicam um candidato inapropriado para a presidência. Se os republicanos tivessem colocado um candidato mais forte não acho que Obama tivesse vencido. No meu estado, a Pensilvânia, as pesquisas estão mostrando uma mudança: se a eleição fosse hoje, Obama não venceria na Pensilvânia. Ele teve um grande sucesso em encontrar Osama Bin Laden. Mas imediatamente, dia após dia, caos. Foi uma vitória tremenda, mas agora a história é sobre as contradições entre os informes oficiais. Falaram que era uma mansão, mas as fotos mostram uma casa simples, com mobília de baixo nível. Nada de mansão. Foi um comunicado desastroso. Quem faz isso na Casa Branca? Michele Obama também teve seus problemas porque tem assessores ruins. Como quando ela foi se encontrar com a rainha. Nancy Reagan tinha fama de ser uma espécie de Maria Antonieta, por gastar muito dinheiro em porcelana para a Casa Branca. Michele Obama tem essa fama também porque se acha que ela gasta muito dinheiro. Que os Obama estão constantemente tirando férias. Que ela vai para a Espanha. Michele Obama não se ajustou ao fato de que, quando ela faz uma viagem, não é uma viagem privada. A viagem dela é sempre muito dispendiosa, tem a questão segurança. Justo nesse tempo, quando as pessoas estão machucadas economicamente. Há um grande problema de emprego nos Estados Unidos. Os Obama estão ficando com uma má reputação por basicamente quererem tirar férias, fazer viagens. A mídia está sempre apontando quantas férias eles tiveram, os gastos com o avião presidencial.
A crise deixou os EUA mais divididos socialmente? De um lado o Tea Party, de outro o movimentos como o de Wisconsin, contra os cortes orçamentários e por emprego?
Sim, concordo. É uma tragédia da administração Obama. Porque Obama foi eleito por um grande número de pessoas, que viu nele uma pessoa moderna, razoável, um homem do centro. Os talk shows alertavam que ninguém estava investigando o seu passado, sugerindo que ele um socialista. Não, isso é bobo, ridículo. Foi uma grande surpresa quando ele conseguiu chegar à Casa Branca e começou a governar. É triste. Pois ele realmente teve uma popularidade tremenda e não se sabia muito sobre ele e a mídia deliberadamente não fez investigações. Eles foram ao Alasca para investigar Sarah Palin, mas nada foi perguntado sobre Obama. De repente Obama chega à Casa Branca e indica pessoas à esquerda. Nos seus discursos ataca os ricos e os milionários, dizendo que eles eram maus, as corporações eram más. Era muito simplista. Fica muito claro que ele não entende nada sobre economia.
Se você ataca constantemente os negócios e taxa pesadamente os negócios, você os afastando de criar empregos. Empregos é a prioridade número 1. Ele deveria estar criando ambiente para os negócios na America e, em vez disso, o que fez foi sempre contra os negócios. Mas eles é que fazem a América próspera. Ele faz uma presidência anti-negócios. Então os homens de negócios não querem colaborar com ele. Essa administração criou uma instabilidade, que está nos segurando economicamente. China está explodindo economicamente. O Brasil também está crescendo. A atmosfera no país é extremamente polarizada. Eu vejo o Tea Party seriamente. É um autêntico movimento populista, não racista --esse ridículo rótulo que o partido democrata quis impor. São cidadãos preocupados com a economia. São cidadãos agindo num processo democrático. Claro que deve haver uns poucos fanáticos, mas no geral são cidadãos comuns que acham que o governo está quebrando o país e fazendo um enorme déficit que os netos e bisnetos terão que pagar. O déficit, a economia deveriam ser a prioridade numero 1. Ele poderia ter feito algumas reformas importantes e todos teriam votado com ele. Em vez disso levou um ano [na reforma da saúde]. Foi ficando fraco. Acho que ele nunca mais vai ganhar aquele ano perdido, quando o governo ficou paralisado com a discussão da reforma do sistema de saúde. Poderia ter colocado as pessoas para recuperar pontes, trabalhar na infraestrutura. Obama deveria ter sido muito mais pró-ativo no seu primeiro ano. Sim, é uma atmosfera envenenada aqui nos EUA. Há conspiração dos dois lados.
E do lado da esquerda?
Eles dizem que Obama é instrumento das grandes corporações. Há fanáticos dos dois lados. O que nos falta é uma mídia de oposição forte. Precisamos que "New York Times", "Washington Post", "Boston Globe" desafiem os pronunciamentos oficiais e não fiquem ouvindo piadas em festas na Casa Branca.
Qual sua opinião sobre Dilma?
Não temos cobertura aqui para eu formar uma opinião. Observo à distância com grande interessante. Estou muito distante para ter uma opinião. Mas é maravilhoso ter uma mulher chefe de Estado. É fenomenal.
Quais são suas impressões sobre o Brasil?
Eu adoro o Brasil. Estou tentando aprender português. Toda a vez que eu retorno do Brasil para os EUA, sempre me sinto perdida. Acho que isso vem da minha família de imigrantes italianos. Quando eu era pequena, numa pequena cidade ao norte de Nova York, todos os meus familiares tinham que trabalhar numa fábrica de sapatos. Eu fui criada numa sociedade que era praticamente toda de italianos. Lembro do jeito que eles falavam, da energia, das personalidades. Tudo aquilo foi ficando abafado. Quando os americanos de origem italiana ascenderam para a classe média, eles perderam essas qualidades italianas das quais eu me lembro da minha infância. Quando eu vou para o Brasil, é como se eu fosse para casa. Eu sempre sinto: posso ser eu mesma integralmente. Posso usar minhas mãos e braços para falar, posso falar com a rapidez e com a energia que eu quero. Todo mundo responde, especialmente no Nordeste.
Apesar dessa imagem liberal, o Brasil é um país com aspectos bem conservadores, como na legislação sobre o aborto, não?
É verdade? Eu não sabia. Como é a lei?
O aborto é crime, só é autorizado em casos específicos. Só hoje [a entrevista ocorreu antes da decisão do STF] está em votação a lei que dá direitos civis a casais homoafetivos.
Eu sempre fui contra a expressão casamento gay, que trouxe muitos problemas com pessoas religiosas, que sentem que está sendo profanando um sacramento religioso. Eu sempre disse que se deveria chamar o tema como união civil.
É assim que está sendo chamado no Brasil.
É ótimo. Acredito que devam existir uniões civis. Meu argumento é que o Estado não pode aprovar o casamento como um todo. Deveria ser apenas um sacramento religioso. O governo deveria aprovar apenas uniões civis, que deveriam ser absolutamente acessíveis por casais homossexuais e heterossexuais igualmente. Gosto do fato de no Brasil estarem trazendo dessa forma, focando nos direitos da união civil.
E sobre o aborto?
Minha posição é de que a mulher tem total soberania sobre o seu corpo. Todo o ser humano tem total soberania sobre o seu corpo, homem ou mulher. Por isso qualquer pessoa tem o direito de fazer qualquer ato sexual ou tomar drogas, desde que o uso de drogas não interfira com responsabilidades como, por exemplo, de um motorista de ônibus ou de um piloto. Da mesma forma em relação ao aborto. Meu argumento sempre foi o de que é a natureza que nos dá o corpo, que implantou o poder da fertilidade nos corpos. Nascemos num mundo e nos tornamos cidadãos quando nascemos. O Estado não tem controle sobre o meu corpo. Ao mesmo tempo aceito o argumento da direita de que aborto é assassinato. Eu digo, sim. Pessoas do meu lado não têm sido honestas em admitir que é uma terrível decisão ética que uma pessoa tem que fazer: acabar com uma vida, a vida de um feto. Eu não concordo com a estratégia de muitas feministas que dizem: não, a vida apenas começa a partir de certo ponto, depois de tantas semanas. As jovens mães que vêem os exames de ultrassom, podem ver o bebê se movendo no útero, podem ver a face do bebê. Acho que muitas jovens estão mais relutantes em fazer aborto quando percebem isso. O que eu estou dizendo é uma combinação das duas coisas: o Estado não tem o direito de dizer a nenhuma mulher o que ela deve fazer com o seu corpo. Sim, a mulher tem o direito de abortar. Mas eu digo: você está cometendo assassinato. Sim, você está> Mas você tem o direito de fazê-lo. Mas você precisa pensar nas consequências éticas e talvez você tenha alguns arrependimentos. Veja a história de Steve Tyler, o cantor que está no show "American Idol" com Jennifer Lopez. Quando era adolescente, com 14 anos, sua namorada ficou grávida e fez um aborto. Ele estava junto e viu que o bebê era um menino. Ele disse: o que eu fiz, o que eu fiz!.E ele tenta tirar isso da sua cabeça desde então. Muitas pessoas não gostam de pensar a respeito, porque quando você pensa a respeito é terrível. Ninguém tem o direito de interferir no processo reprodutivo ou nas relações de uma mulher. Sou radical nisso.
Aqui é crime, com pequenas exceções. Ricas fazem aborto clandestinamente em clínicas privadas o as pobres correm o risco de morrer.
Esse é o resultado disso. A igreja nos tempos modernos não deveria ter papel algum em fazer leis.
A sra. criticou o movimento feminista. As mulheres no mundo estão melhorando de posição?
Eu critiquei o movimento feminista nos EUA, não o movimento mundial. No mundo o movimento feminista é uma força muito positiva, especialmente por intervir em situações, como na Índia, em que mulheres são tratadas como propriedade, há casamentos arranjados e abusos físicos. No combate à violência familiar o movimento feminista é extremamente importante. Para fazer as mulheres entenderem que elas não devem tolerar [a violência] e para educar os homens de que essa não é a forma pela qual a força masculina deve se expressar. Isso é muito importante. Fui muito crítica em relação ao movimento nos EUA, pois o feminismo ele era anti-masculino. Apresentava a história como apenas fruto da opressão masculina. Eu me combati essa visão. Vim de uma família italiana, onde todos os homens não batiam em mulheres. Os homens trabalhavam o dia inteiro e faziam tudo para proteger as mulheres e as crianças. Era uma tremenda responsabilidade para os homens. As famílias imigrantes se desintegraram, os abusos acontecem, mas eu nunca vi isso. Meu pai e meus tios foram para a guerra, arriscaram suas vidas. E o que o feminismo comunicava às gerações jovens: que a herança era apenas de atrocidades masculinas e vítimas femininas. Eu não gosto de centrar na vitimização. Estamos vendo mulheres aparecendo na cena do poder político em todos os lugares: na Europa, no Brasil. Graças à mídia moderna, que mostra as mulheres no poder. Na Alemanha e em tantos outros exemplos de mulheres aceitas na arena política. Isso não acontecia quando eu era jovem. As mulheres na política eram muito poucas.
E a lei da França sobre as burcas?
(suspiro). É surpreendente para mim. Meu pai falava francês. Eu cresci pensando a França como o país de pensamento mais livre do mundo. O Iluminismo. Como uma lei como essa pode passar, ditando para qualquer mulher na França o que ela pode usar? Qualquer mulher, não apenas as muçulmanas. Não é o governo que tem que dizer o que qualquer pessoa, homem ou mulher, pode usar. Pode ser legítimo para um chefe de uma empresa. Por exemplo, se você é uma recepcionista, acho que o chefe pode dizer: você não pode usar burca. Se você quer esse emprego, você tem que se vestir de acordo, para que as pessoas possam ver o seu rosto, você terá que recepcioná-las. É legítimo na esfera privada. Mas como o qualquer governo ousa dizer a qualquer mulher como se vestir! É extraordinário! Absurdo! Mas eles estão levando a sério, levando mulheres para as delegacias. Esse tipo de controle sobre o jeito como as pessoas se vestem nas ruas é um precedente muito ruim. Dá muito poder para a polícia.
Qual o seu principal projeto atual?
Estou trabalhando há quatro anos nesse livro sobre artes visuais. Não tem título ainda. É um livro de imagens, com a história de todos os vários estilos artísticos. É um livro para o público em geral. Ele introduz a história dos estilos artísticos, do Egito antigo até o presente. Muito difícil de fazer, cada capítulo tem uma bela ilustração colorida. Eu escrevo livros muito lentamente. Meu editor é muito paciente. Ao contrário, redijo artigos muito rapidamente. Eu ataquei a Lady Gaga recentemente. Estou quase terminando o livro, que está programado para sair na primavera do próximo ano. É um livro complicado de produzir.
O que a sra. está lendo?
Não muito, porque eu estou escrevendo meu livro e dando aulas. Não tenho muito tempo para ler atualmente. Mas o último filme que eu vi foi "Rio", há uma semana com meu filho de 8 anos. Estava tão animada em ver uma animação tão bonita, com vôos, Copacabana, favelas...É muito interessante, muito bom para o Brasil, para os jovens do mundo verem o Brasil, verem a geografia do Rio. Jovens americanos têm um senso muito pobre de geografia. Fiquei encantada, é espetacular, um grande filme.
A sra. escreveu muito sobre Elisabeth Taylor.
Ela foi muito importante na minha vida. Lá trás, 1950, quando eu era criança, era um período muito repressivo para os papéis femininos. Quando os soldados voltaram da Segunda Guerra foi um período muito doméstico. A mulher deveria ser apenas mãe e esposa. Não havia estímulos para as mulheres terem carreiras. Em 1920, 1930 muitas mulheres tiveram carreira, foi conquistado o direito de voto. Isso tinha desaparecido. As mulheres deveriam se comportar de acordo com certos padrões. Eu amo Liz Taylor. Naquele tempo havia muitas atrizes loiras que tinham uma personalidade muito solar, como Doris Day, Debbie Reynolds. Tenho origem italiana. Ninguém é loiro, todo mundo é de cabelo castanho. E, nos filmes, todo mundo era loiro, loiro, loiro. Liz parecia uma espanhola ou italiana, ou judia, ou árabe. Ela era má. Parecia má e eu adorava isso. Quando ela tirou Eddie Fisher de Debbie Reynolds foi um dos grandes momentos da minha vida inteira. Porque eu odiava Debbie naquela época. Muitos sorrisos. Eu adorava Liz por causa desses tremendos escândalos. Lembro que comprei uma revista que contou tudo sobre o escândalo. Um dos grandes filmes da minha vida é "Butterfield 8" ("O Número do Amor"). Liz odiou esse filme, mas para mim foi um dos filmes mais importantes. Lembro quando ela acorda no início do filme na cama no apartamento do homem que tinha saído para o trabalho, a mulher dele estava fora. Ela anda pelo aparamento, escova os dentes com uísque, uma imagem de mulher sexy, com autoridade. Esse foi um período em que a igreja católica era muito ativa, que publicava os filmes que os católicos deveriam ou não deveriam ver. "Butterfield 8" mostrava sexualidade de forma aberta. Muitos dos meus sentimentos sobre sexo e paganismo na cultura ocidental vieram de observar Liz naquele filme. Fez um efeito muito profundo em mim. Foi mágico. Ela era maravilhosa, tinha um carisma enorme, uma sexualidade natural, relaxada. Sou uma enorme fã dela. A TV a cabo trouxe os filmes dela e hoje as pessoas percebem que ela era maravilhosa. Ela era um símbolo sexual e as pessoas não levaram a sério como uma atriz. Isso fez as pessoas não perceberam a grande atriz que ela era. Como Daniela Mercury, ela era totalmente aberta para a câmera. Você não pode ensinar isso. Eu odeio Meryl Streep. Eu a admiro como uma boa atriz, mas não como uma grande. Porque ela é cheia de jogos, de estratégias. Nunca fui convencida pelo trabalho dela. Com Liz, a câmera chegava perto dos olhos dela, fazia um zoom dos olhos dela para a sua alma, para o seu coração. Ela fica totalmente exposta emocionalmente.
Há uma nova Liz Taylor?
Estamos num período muito pobre. Não temos estrelas maiores. Angelina Jolie teve um bom começo, foi uma promessa, mas não teve tempo de crescer artisticamente. O último grande papel escrito para uma mulher foi em "Instinto Selvagem", para Sharon Stone. Isso foi 20 anos atrás! Hollywood nunca mais encontrou um bom papel feminino para Sharon. Não estamos mais num período de estrelas. Muitos dos estúdios querem produzir só filmes de grane bilheteria. Fiquei impressionada com "O Escritor Fantasma", que vi recentemente.
Como andam as artes?
Eu estou com uma atitude muito negativa sobre a arte contemporânea. Em 2008, quando fiz minha primeira viagem a Salvador, para uma palestra, fiquei apaixonada pela música do Nordeste, axé etc. Foi como renascer novamente. Não tinha ideia do que era o samba reggae. Quando eu descobri, foi como renascer novamente. Uau! Estava deprimida, achava que não havia nada de novo. Apreciava a arte retrospectivamente. Nos últimos anos estou tão feliz de ter conhecido a música brasileira. Eu descobri Elis Regina. Eu tinha lecionando sobre arte a minha vida inteira e nunca tinha ouvido o nome dela! É certo que ela morreu muito cedo e não teve tempo de ser reconhecida internacionalmente. Eu encomendo os discos, estudo. É a cantora favorita de Daniela Mercury. Há outros exemplos, tropicália. Hoje é meu interesse numero um: a música brasileira. Tudo sobre ela, a história. Estou aprendendo português lentamente. Escuto "Tempo Perdido", do Legião Urbana. Na internet há ótimos vídeos de shows no Brasil. De hoje e do passado. Eu sinto a energia vindo desses vídeos de música. Foi como nascer de novo. Depois da minha viagem ao Brasil, a descoberta de Daniela, minha vida mudou. Isso restaurou minha energia, minha juventude. Me sinto muito rejuvenescida por isso. Estamos falando em ter um intercâmbio cultural entre nossos estudantes [dos EUA] e os de Salvador. Um dos meus objetivos --estou tão ocupada com esse livro-- é trazer a música brasileira para uma posição mais proeminente nos EUA. Por exemplo, nos canais de TV a cabo. Agora há canais de música e eles têm muitos canais de música espanhola, clássica, hip hop. Mas não há canal de musica brasileira! É uma grande omissão. Isso vai ser minha campanha, quando eu terminar esse livro: trazer a música brasileira. A sofisticação dos ritmos e a qualidade dos vocais são tão superiores em relação ao que os jovens estão escutando agora --um tipo vulgar, de qualidade mecânica, que virou o estilo-padrão nos EUA hoje. Os jovens não têm acesso à música brasileira e isso é um escândalo!
E sobre literatura, poesia?
Não estou contente sobre o que está acontecendo no mundo das artes, da literatura. Há uma grande mudança geracional. Jovens estão mergulhados na tecnologia e na internet, se comunicando por mensagens no celular, no Facebook, Twitter, O que tira muita energia criativa das artes tradicionais. Acho que as artes tradicionais estão numa séria crise no mundo, especialmente na América. Elas não têm mais o tipo de cachê, prestígio, energia. Animação está indo muito bem. "Rio" é um bom exemplo. Os estudantes de animação têm grande imaginação. Eu me preocupo com essa geração que cresceu com os videogames. Eles vêem o mundo em termos de ciberespaço. Não com o material concreto, pintura, escultura. Eu estou escrevendo esse livro e me pergunto: onde estão os principais artistas?
E onde estão?
Hoje não há mais nenhum artista importante no mundo. Em literatura também. O que acontece é que desde que a web foi globalizada, há um vazio. Os jovens que cresceram nesse mundo da web. O tipo de imagens que vêem na tela não têm a mesma qualidade das imagens da história da arte, imagens a óleo. Hoje é a técnica do photoshop, da arte digital. E as cores também. As cores do mundo digital são como de quadrinhos. Os jovens só vêem cores de quadrinhos. Mas quando você vê uma grande obra de pintura a óleo, a gradação é incrível. Como nos impressionistas, como Monet, Renoir. Num bosque pode haver 30 tons diferentes de verde. Os jovens nunca viram isso. Isso é um problema enorme. As sutilezas, as sombras na pintura. Hoje, com as técnicas de photoshop, meus estudantes de fotografia sempre me dizem que é trágico. Que as habilidades de usar câmeras e de tratar de uma fotografia, trabalhando num laboratório, estão perdidas agora por causa do digital. Porque se pode fazer todo o tipo de modificação. Além disso, você não precisa ser muito habilidoso. Não há mais produção de filmes fotográficos. Eu cresci vendo os grandes filmes europeus: Bergman, Fellini, Antonioni. Jovens estão numa tela de computador e não têm noção de como fazer uma boa composição. Agora é tudo ligeiro e depois se usa o photoshop para mudar. É perigoso politicamente. Agora sobre as fotos de Osama. Todo mundo pode dizer que foram modificadas pelo governo. Onde está a verdade, se tudo pode ser modificado digitalmente? Ninguém sabe o que é verdade ou não.
A sra. tem arrependimentos na sua vida pessoal? Uma vez comentou que tinha se arrependido de ter sido fiel.
Estou separada de minha antiga parceira. Mas temos um filho. Ficamos juntas por 15 anos. Não estou namorando ninguém. Eu sou basicamente monogâmica. É minha natureza. Fidelidade é ético. Sou velha, estou com 64, tenho muita energia, mas não prevejo nenhum caso amoroso no futuro. Talvez no Brasil. Não sei.
Algum arrependimento sobre a carreira?
Eu me arrependo de muita coisa de quando eu era professora nos 1970, na escola de arte. Eu era selvagem.
Mas isso era ruim?
Eu era uma militante. Fiz todo o tipo de coisas malucas. Era cheia de arrogância, cheia de segurança sobre mim mesma, queria que o mundo mudasse imediatamente.
Quem não queria?
Pois é. Eu tive que aprender uma lição. Que as mudanças reais ou importantes fluem. Mudanças rápidas como uma revolução são seguidas geralmente não por justiça, mas por totalitarismos, como com Napoleão. A revolução francesa produziu Napoleão. Eu aprendi muito. Sou mais sábia sobre como conduzir a mim mesma. Quando eu olho para trás nos 1970! Oh! Eu gostava de tanta confrontação, toda simples coisa precisava ser mudada, agora. Minha geração era assim: o mundo precisava ser mudado da noite para o dia como queríamos.
E a geração de hoje?
Agora que somos velhos, estamos nos aposentado, causando todos esses problemas econômicos, pois precisamos de muitos cuidados. Nos EUA há uma hostilidade perceptível dos jovens, que olham para nós, os "babyboomers", e sabem que não vão ter as oportunidades de emprego que tivemos e que terão piores padrões de vida. Eles sentem que fomos muito autocentrados --e é verdade.
Estação Música Total
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