30.4.12
Postado por
Sávio Hackradt
Como
a pesquisa de universidades paulistas contribui para os estudos de gênero no
país
Por
Fabrício Marques, para a Fapesp*
O
espaço conquistado pelas mulheres e a consequente teia de relações que elas se
habilitaram a estabelecer foram abordados por pesquisadores do estado de São
Paulo cujo trabalho recebeu financiamento da FAPESP ao longo dos 50 anos de
trajetória da Fundação. Se a preocupação dos estudos feitos nos anos 1960 e
1970 referiu-se principalmente à condição feminina, materializada nos efeitos
da violência doméstica e nas assimetrias do mercado de trabalho, o referencial
expandiu-se nas décadas seguintes para abarcar as relações de gênero, os
vínculos estabelecidos entre homens e mulheres (e também no interior das duas
categorias) em camadas diversas da condição humana.
Em
1963, a socióloga Eva Alterman Blay, pioneira em estudos sobre a mulher no
Brasil e referência do movimento feminista, recebeu uma bolsa da FAPESP para
fazer seu mestrado sobre a condição da mulher no trabalho doméstico, domiciliar
e na indústria. Ela havia se graduado e fora convidada para trabalhar como instrutora
voluntária, sem remuneração, no departamento de ciências sociais da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP. “Eu tinha sido uma boa aluna e os
professores me convidaram para trabalhar como professora e pesquisadora. Mas
como não havia vaga, o trabalho era sem remuneração”, relembra. Azis Simão e
Ruy Coelho, dois de seus professores, sentiam-se desconfortáveis com a situação
e sugeriram que ela pedisse uma bolsa para a recém-criada Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo. Eva apresentou seu projeto, para realizar
estudos sobre a mulher trabalhadora, e foi chamada para conversar com o então
diretor científico da FAPESP, o geneticista Warwick Kerr.
“Ele
me tratou muito bem, e deve ter gostado do projeto, porque a bolsa foi concedida.
Mas parecia ter dificuldade em compreender por que eu queria estudar a condição
da mulher. Expliquei que faltavam dados sobre a mulher, que a sociedade era
dividida entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, e que cada
categoria desperta o interesse da sociologia. Ele fazia perguntas de forma
muito bem-humorada e em nenhum momento me senti constrangida. Mas como ninguém
fazia esses estudos naquela época, ele, assim como muita gente, tinha
dificuldade de compreender a importância desse tema”, recorda-se Eva Blay, que
cita a colega Heleieth Saffioti (1934-2010) como outro exemplo de pesquisadora
interessada no tema naquela mesma época. “O livro da Simone de Beauvoir havia
circulado no Brasil nos anos 1950, mas não teve a repercussão que hoje se diz”,
recorda-se a professora, que sentiu um forte impacto sobre o tema depois de ler
uma versão em francês do livro da feminista Betty Friedan (1921-2006), La femme
mystifiée. “Me lembro de ler o livro enquanto amamentava meu filho em 1964 e
concluir que era aquilo que eu queria estudar”, afirma.
A
bolsa de mestrado rendeu uma dissertação sobre o Ginásio Industrial Feminino em
São Paulo, apresentada em 1969. Mesmo antes de concluí-la, já orientava na
pós-graduação. Nessa época, ofereceu uma disciplina na pós-graduação da
sociologia sobre a questão da mulher. “Ninguém se inscreveu”, diz. Ela recebeu
outra bolsa da FAPESP para fazer o doutorado, concluído em 1973, sobre o espaço
das mulheres na indústria paulista. “Foi uma dificuldade tremenda obter os
dados, porque até aquela época o IBGE não distinguia homens e mulheres nos
censos industriais. Só queria saber quem era o chefe da família, deduzindo a
priori que era o homem, mesmo que não fosse. O tema era ignorado.” Um dos
achados de sua pesquisa foi mostrar que as mulheres com trabalho qualificado na
indústria paulista eram claramente subaproveitadas. “O salário era pouco maior
do que a metade do dos homens. Mesmo sendo formadas em medicina ou em química,
recebiam tarefas subalternas na indústria, como traduzir manuais, ou trabalhar
em funções de secretariado”, lembra.
O
ineditismo de sua pesquisa e o avanço do feminismo nos Estados Unidos e na
Europa chamaram atenção para o tema e geraram uma série de convites para
palestras. “A princípio, alguns sindicatos reagiram mal aos resultados de minha
pesquisa. Recebi uma carta do sindicato dos químicos dizendo que eu estava
ferindo a imagem da categoria. Outros reclamavam da crítica ao salário mais
baixo das mulheres. Eu dava exemplos: se a mulher ganha 50 e o homem 70, alguém
está ficando com os 20 de diferença. Aí eles entendiam e a resistência
diminuiu”, diz Eva Blay, que criou, nos anos 1980, o Núcleo de Estudos da
Mulher e das Relações Sociais de Gênero (Nemge) da USP e se tornou uma
referência do feminismo – inclusive como senadora da República, entre 1992 e
1994, quando assumiu a vaga de Fernando Henrique Cardoso, nomeado ministro das
Relações Exteriores e da Fazenda. Logo depois de Eva Blay, outros pesquisadores
envolveram-se com a questão da mulher no mercado de trabalho, caso, por
exemplo, da socióloga Cristina Bruschini (1943-2012), que em 1977 concluiu
mestrado na USP sobre mulheres em profissões de nível superior, com bolsa da
FAPESP, e aprofundaria o tema em diversos artigos e livros, e ao longo de sua
carreira de pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.
Se
os estudos brasileiros sobre a condição feminina sofreram influência da
produção acadêmica norte-americana e europeia, uma de suas vertentes, a
pesquisa sobre a violência contra a mulher, desenvolveu-se de forma particular
no Brasil – impulsionada por uma realidade trágica. Um dos marcos foi o livro
Morte em família (Grall, 1983), da antropóloga Mariza Corrêa, da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), sobre homicídios e tentativas de homicídios
cometidos em Campinas entre 1952 e 1972 e as representações jurídicas dos
papéis sexuais: a Justiça avaliava mais o papel do homem e da mulher do que o
crime em si. “No fundo, o que se julgava era se a vítima era boa esposa ou não
ou se o marido assassino era um bom provedor do lar”, diz a antropóloga Guita
Grin Debert, professora da Unicamp. Até os anos 1970 era corriqueiro na Justiça
brasileira o argumento da “legítima defesa da honra” para absolver maridos que
matavam esposas. “Quando cheguei a Campinas, em 1970, ocorria o julgamento de
um rumoroso caso do promotor que matou a esposa adúltera e acabou absolvido.
‘Campinas lavou a sua honra’, foi a manchete do jornal”, disse Mariza Corrêa em
entrevista ao Jornal da Unicamp, em 2004, referindo-se ao assassinato da mãe da
atriz Maitê Proença, morta pelo marido. O assassinato da socialite Ângela Diniz
em 1976 pelo namorado Doca Street foi um ponto de inflexão – o assassino foi
absolvido num primeiro julgamento, que acabou anulado, mas condenado no
segundo. O advento das delegacias da mulher foi uma resposta à mobilização do
movimento feminista, mas também pode ser visto como um dos efeitos da pesquisa
sobre a violência contra a mulher aplicada a políticas públicas.
Já
na segunda metade dos anos 1970, tomou corpo uma mudança no enfoque teórico dos
estudos sobre a condição feminina, marcado por uma nova nomenclatura: a
pesquisa sobre as relações de gênero. “A partir de certo momento, ficou claro
que a condição da mulher não existe de forma isolada como tema de pesquisa: o
que existe é uma relação social, uma relação entre homens e mulheres”, explica
Eva Blay. “Constatou-se que a ideia de mulher focalizada pela pesquisa até
então era restrita. Dizia respeito a mulheres brancas, heterossexuais e em
idade reprodutiva. Crianças e mulheres idosas, mulheres negras e homossexuais
não se enxergavam nos estudos da mulher”, diz Guita Debert. “A ideia se centra
mais em como as diferenças são produzidas, colocando em xeque a universalidade
da dominação masculina”, afirma.
A
produção do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, criado na Unicamp em 1986, é
exemplar da complexidade desse novo enfoque teórico. Os estudos feitos pelo
núcleo abrangem preocupações como a relação entre as características masculinas
e femininas e as convenções sobre o corpo, as intervenções médicas como
cirurgias plásticas rejuvenescedoras ou operações de mudança de sexo, a
produção artística e científica de homens e mulheres, a sociabilidade dos
homossexuais que envelhecem, o mercado sexual e a pornografia, entre outros. Um
projeto temático financiado pela FAPESP entre 2004 e 2009 ajudou a consolidar
vários eixos de pesquisa do grupo. “O projeto foi o mais importante do núcleo,
no sentido de costurar e aglutinar interesses e objetos de pesquisa que vinham
sendo desenvolvidos desde sua formação”, diz Maria Conceição da Costa,
professora do departamento de política científica e tecnológica do Instituto de
Geociências da Unicamp, atual coordenadora do Núcleo Pagu – seu campo de
estudos é a interface entre gênero e ciência.
Guita
Debert, que já coordenou o Núcleo Pagu, dedica-se, entre outros tópicos, ao
estudo da sexualidade na velhice, com foco nas cirurgias estéticas utilizadas
para camuflar os efeitos do envelhecimento. Uma de suas contribuições consistiu
em mostrar que as cirurgias estéticas não ampliam as potencialidades do corpo,
como imagina o senso comum. “Ao contrário, restringem tais potencialidades
porque representam uma aversão às diferenças. As pessoas sabem que não vão se
transformar numa Gisele Bündchen, o que querem é apagar características que
fogem à normalidade e serem aceitas”, afirma a professora, que é membro da
Coordenação de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. No caso das cirurgias
usadas para remover marcas da passagem do tempo, a situação é ainda mais
complexa. “A gerontologia enfatiza a ideia de que é preciso envelhecer com
qualidade de vida, de que sexo não tem idade, mas o que as cirurgias fazem é
tentar driblar a natureza. Não existe uma estética da velhice para norteá-la”,
afirma a pesquisadora, que atualmente se debruça também sobre um projeto de
políticas públicas para idosos envolvendo sexualidade, gênero e violência.
Adriana
Piscitelli, pesquisadora e também ex-coordenadora do Núcleo Pagu, estudou a
transnacionalização dos mercados do sexo, mergulhando no universo do turismo
sexual em Fortaleza. Ela acompanhou as trajetórias de brasileiras que migraram
para a Itália, convidadas por turistas estrangeiros, e deixaram o mercado do
sexo ao casar com eles, e também de brasileiras que se dirigiram à Espanha para
trabalhar, oferecendo serviços sexuais. Os resultados de sua pesquisa
questionam as leituras que consideram todos esses deslocamentos como tráfico de
mulheres com fins de exploração sexual. A migração de brasileiras para
trabalhar na indústria do sexo europeia tem a ver com a busca de oportunidades
econômicas e sociais, como é comum em fluxos migratórios. Segundo Adriana, o
trabalho na indústria do sexo é, muitas vezes, uma estratégia temporária para
viabilizar o projeto migratório, que pode envolver a intenção de casar e formar
família. “Encontrei numerosos casos de mulheres que saíram da indústria do sexo
para se casar, permanecendo na Europa. E não são casamentos de fachada”,
afirmou. Na Espanha, observou que as brasileiras encaixavam-se num ranking de
procura dos empresários da indústria do sexo, que privilegiava as profissionais
vindas do Leste Europeu, e diluía as brasileiras na categoria de prostitutas
latino-americanas – ainda que fossem mais valorizadas no mercado sexual que outra
categoria, as africanas.
Os
estudos de gênero no Brasil sofisticaram-se nos últimos anos. Para ter uma
ideia da diversidade, entre os projetos atualmente apoiados pela FAPESP há
pesquisas sobre os cuidados com a saúde com homens e mulheres residentes na capital
paulista (Faculdade de Saúde Pública da USP), o papel social das arquitetas
(Universidade Mackenzie), a divisão de tarefas entre homens e mulheres numa
cooperativa de catadores de papel (Faculdade de Educação da Unicamp) ou
dificuldades de acesso à Justiça para as mulheres (Faculdade de Direito da USP
em Ribeirão Preto). “As principais universidades do país têm grupos dedicados
às pesquisas de gênero”, diz Eva Blay. “O avanço foi extraordinário: não há
legislação sobre saúde, educação, violência que não leve em consideração as
relações de gênero. Há um intercâmbio entre o que a universidade produz e a
formulação de políticas públicas”, afirma a professora.
Fonte:
Revista da Fapesp - Abril 2012
Estação Música Total
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