11.6.12
Postado por
Sávio Hackradt
Submisso e glorioso, resignado e irredutível, é como se
ele nos olhasse, compadecido, e dissesse: 'Não se preocupe. Vai passar'
Gilles Lapouge* - O Estado de São Paulo / Aliás
Está na hora de lembrar dos jumentos. Os jornais falam
muito do Festival de Cannes, do aquecimento global, do naufrágio da Grécia, mas
aos jumentos quase ninguém se refere. O cavalo é mais favorecido. É sempre o
foco da atenção pois tem elegância, brilho. Domingo vai às corridas, onde
caminha gingando como uma estrela de cinema. Os homens usam belas calças e as
mulheres lindos chapéus para montar nele.
O jumento não tem a mesma presença. É chamado de
"burro" e de "asno". Palavras ofensivas. Tem cor de estopa.
É desnutrido. Por que esse rosário de afrontas? Se eu fosse jumento, faria um
motim. Brigitte Bardot falou recentemente dos jumentos, os do Brasil. Ela ficou
furiosa ao saber que o Rio Grande do Norte, visando a criar uma nova fonte de
renda, teria aceitado exportar 300 mil jumentos por ano para a China para
nutrir as indústrias alimentícias e cosméticas desse país. Eu compartilho da
cólera de Brigitte.
A rarefação dos jumentos nos campos - no Nordeste
brasileiro, no sul da França, mesmo na Palestina - sempre me pareceu uma
desgraça. Fizemos tanta coisa juntos, eles e nós - as pirâmides, as minas, as
rodas d'água, as catedrais, a agricultura...
O jumento também transformou uma desvantagem em mérito.
Ele sofre de um problema de vértebras: tem uma a menos. Mas, como é dono de um
espírito dócil, aceitou esse infortúnio, que lhe dá pavor de correr e lhe tira
o fôlego quando o dono o faz trotar. Na verdade, ele transforma essa fraqueza
em força. Como suas vértebras dorsais são bastante desenvolvidas, seu dorso é
saliente e seus rins são fortes. Essa constituição singular se ajusta à sela,
de madeira ou de couro.
Todas essa inferioridade e a maneira com que ele teve de
assumi-la compuseram o destino do jumento. Ele não é bom para correr e não sabe
galopar. Em compensação é ótimo para puxar charrete, mover as rodas que trazem
a água para a superfície no deserto, carregar feixes de trigo e sacos de terra
e pedra. É bom também para descer ao fundo das minas de carvão, onde, muitas
vezes, de tanto viver no escuro, acaba ficando cego.
O jumento participou de todas as aventuras do homem. Suou
por nós. Perdeu seu fôlego por nós. Morreu sob nossos golpes. E, quando os
engenheiros inventaram o motor de explosão, a moto, o trator e o caminhão,
adeus jumento! Adeus, velho servidor! Vamos vendê-lo para a China para que as
pessoas o comam. Nós o jogamos como se joga uma roupa esgarçada, uma gilete sem
corte. Adeus, velho amigo, mas você não serve para mais nada!
Gosto muito dos jumentos do Nordeste brasileiro. Venho
testemunhando sua derrota há 40 anos. E vi esta aberração: motos ruidosas,
nauseabundas, perigosas, substituindo jumentos para cercar os rebanhos, em meio
a um atroz odor de combustível. Em 1974 fiz uma longa viagem pelo Nordeste do
Brasil. Sozinho. Fui de cidade em cidade, ao acaso, segundo meu desejo, em
ônibus que rodavam 10, 12 horas por dia. Os jumentos já começavam a
desaparecer, mas ainda eram numerosos. Faziam parte da paisagem nordestina.
Quando chegava aos vilarejos assolados pela seca, eu ia cumprimentá-los. Eles
me lembravam aqueles jumentos que conheci e amei na minha infância, não no
Brasil, mas na França, nas montanhas austeras e pedregosas da Provença. Eu
falava com os jumentos de João Pessoa ou de Epitácio Pessoa. Temos boas
lembranças em comum, os jumentos do Nordeste e eu. Hoje, quando atravesso esses
lugares ermos, em meio à barulheira dos caminhões e das motos, procuro por todo
o lado as orelhas, as belas orelhas sensíveis, e elas sumiram.
Eu respirava seu odor. Olhava seus grandes olhos
melancólicos e era como se um tapete mágico me conduzisse de volta aos tempos
felizes da infância. Foi nessas longas noites no Nordeste que compreendi por
que tanto amava os jumentos. Do outro lado do mundo, encontrei os mesmos
animais, tão bonitos, tão fortes, tão resignados. Como seus congêneres da
Provença, os pequenos jumentos do Nordeste se aproximavam de mim e cheiravam
minhas mãos. Eles gostavam do meu cheiro, e eu do deles. Certas noites, nesse
longo périplo solitário entre Salvador e Natal, Recife e Terezinha, sentia uma
certa angústia pelo fato de estar só. Então ia ver os jumentos. Tínhamos este
ponto em comum: detesto a solidão, os jumentos, também. Se um jumento está sem
companhia, fica infeliz. Entedia-se a ponto de parecer que pode morrer de
tédio.
O jumento não é só corajoso e útil: também tem caráter.
Apesar de sua cortesia e indulgência com relação às loucuras e vilanias dos
homens, jamais transige em questão de princípios. Na Bíblia, uma jumenta
impediu que seu senhor, o adivinho Balaam, bloqueasse a passagem do povo de
Israel quando este se aproximava da Terra Prometida. Naquele dia, os homens
estiveram muito perto do desastre. Se a jumenta não tivesse dado uns bons
coices em Balaam, os judeus jamais teriam continuado sua epopeia e isso teria
provocado uma grande confusão na Bíblia, na história religiosa e em toda a História.
Teríamos que começar tudo do zero. E Deus, como iria se sair dessa?
Em recompensa, o jumento teve o privilégio de aquecer com
seu sopro o Menino Jesus na manjedoura. O jumento também teve a honra de servir
de montaria para Cristo quando Ele entrou em Jerusalém, antes da Paixão. Jesus
ficou muito emocionado e marcou o dorso do jumento com um sinal da cruz. Na
Provença nós chamamos de "cruz de Santo André". Fiquei comovido ao
encontrar nos jegues do Nordeste o mesmo sinal da cruz.
O jumento é bem considerado pelos deuses. Enquanto os
homens o condenam ao insulto, ao desprezo, à pancada e ao trabalho perpétuo, as
sociedades religiosas têm consideração com ele. A história santa está repleta
de jumentos. A Bíblia o cita 133 vezes, um recorde entre os animais. Em Josué,
ficamos sabendo que o jumento foi montado por judeus da mais alta sociedade,
príncipes e damas. Cada patriarca tinha seu jumento. Abigail, que vai ao
encontro de David, sela seu jumento (Samuel, 25) Zorobabel, depois da Babilônia
retorna a Jerusalém montado no dele. Sansão, quando 3 mil filisteus o atacam,
usa uma queixada de jumento para revidar e os mata.
O jumento vai do Velho Testamento para o Novo. Jesus
escolheu um burrico, não um cavalo, para entrar em Jerusalém. Em Roma, os
pagãos ridicularizavam a religião cristã por causa de sua amizade com os
jumentos. Um pouco mais tarde, encontramos muitos místicos cristãos no Egito
que se entregavam a penitências terríveis: viver sentados na ponta de uma
coluna de pedra, numa árvore, quase imersos num pântano ou então se mantendo de
tal modo imóveis que os pássaros faziam ninho em suas mãos. Os pagãos se
divertem com esses fanáticos. E os chamam de "jumentos".
É verdade que mesmo em países cristãos os jumentos foram
às vezes maltratados. Na Espanha, quando Isabel, a Católica, mandava queimar
uma feiticeira, esta era amarrada nua num burro para que, à pena de morte, se
adicionasse o suplício de partir da vida no dorso de um animal desprezado e
obsceno. Na França os professores durante muito tempo colocavam um chapéu de
asno na cabeça dos maus alunos. Por toda parte o jumento foi relegado ao
desprezo e à injúria. Ao longo da história (salvo nos países do Oriente Médio),
ele esteve no mais baixo nível da sociedade. Pior: foi sempre o bode expiatório
dos mais humildes, o doméstico dos domésticos, o escravo dos escravos, o
proletário dos proletários.
Alguns intelectuais foram em seu socorro. Victor Hugo
escreveu, no fim da vida, um imenso poema glorificando o jumento. O grande
historiador Michelet sublinhou o papel do burro na história dos homens, e o
grande naturalista Buffon defendeu o jumento contra o cavalo. O filósofo da
Renascença Giordano Bruno, último homem queimado pela Inquisição, em 1600, fez
do jumento um modelo de espírito e erudição. Os sábios que acompanharam
Napoleão Bonaparte no Egito, em 1798, montavam jumentos. Quando a tropa foi
atacada pelos mamelucos, os oficiais franceses gritaram: "Protejam os
jumentos no centro". No geral, pintores e poetas amam o jumento. Os
cabalistas judeus descobriram que a palavra "jumento", em hebraico,
tem as mesmas letras que a palavra "matéria". E concluíram que o
jumento é "o mestre dos segredos do universo". Têm razão. O jumento
entende tudo: se é idiota, é idiota como O Idiota de Dostoievski, o príncipe
Muichkine - que é genial porque, se não compreende as coisas corriqueiras,
compreende, por outro lado, as mais obscuras.
O jumento sabe tudo. Ele não trota nas mesmas paisagens
que nós. Apenas aparenta compartilhar nossos caminhos, quando na realidade está
em outro lugar, vem de outro lugar, vai para outro lugar. Ele atravessa
educadamente nossa geografia sem fazer ruído para não nos perturbar, mas na
verdade não caminha no mesmo passo que nós. Somente os poetas compreenderam a
nobreza do jumento. Na França, no início do século 20, Francis Jammes escreveu
uma oração para eles. É tão bela e luminosa que eu vou citá-la:
Prece para chegar ao Paraíso em Companhia dos Jumentos
Quando for a hora de ir a vosso encontro, meu Deus, fazei
com que seja num dia em que o campo esteja brilhando em festa. Pegarei meu
bastão e pela grande estrada irei, e direi aos jumentos, meus amigos: sou
Francis Jammes e vou para o paraíso, porque não existe inferno na terra do Bom
Deus. Eu lhes direi: venham pobres animais queridos, que com um brusco
movimento de orelhas se livram das moscas, dos golpes e das abelhas. Que eu
apareça diante de Vós entre esses animais que amo tanto porque baixam a cabeça
docemente e juntam as pequenas patas de uma maneira tão gentil que dá pena. Meu
Deus, fazei com que eu chegue até Vós com esses jumentos. Fazei com que os
anjos nos conduzam em paz pelos riachos ensombreados em cujas margens tremulam
cerejeiras, e fazei com que nessa morada das almas, sob vossos divinos olhos,
eu me assemelhe aos jumentos, cuja humildade e doce pobreza se refletirão na
limpidez do amor eterno.
Certamente, com o passar do tempo e dos milênios (ele está
entre nós há 5 mil anos) o jumento começa a entender que as coisas não vão
muito bem para ele, mas não se revolta. Sua tática é sutil. O cérebro humano
não a alcança. O jumento é submisso e glorioso ao mesmo tempo, resignado e
irredutível, escravo e soberano, vencido e vencedor. Ele dá cambalhotas nas
primaveras onde não já não estamos. Encontrou obstáculos e os contornou. Ele se
salvou do tempo. Sobre seus belos cascos, trota nas pradarias onde as horas não
soam.
Se o espancamos, ele nos olha com um olhar incrédulo e
belo. Não fica com raiva. Tem pena de nós. Não nos culpa, só nos observa. Ele
gostaria de nos ajudar a ser menos vingativos. E nos consola de nossas
maldades. "Não se preocupe", parece dizer, arreganhando os beiços,
"não é sua culpa. Você é assim, mas isso vai passar. É um mau momento, uma
má eternidade. Depois, você vai ver, tudo será melhor."
Durante a 1ª Guerra Mundial, em Verdun, inúmeros soldados
foram mortos e enterrados. Inúmeros jumentos também foram mortos, mas não foram
enterrados. Há alguns anos, um pintor de Auvergne (região montanhosa no centro
da França onde há muitos jumentos), Raymond Boissy, manifestou sua indignação.
E propôs que um monumento fosse erigido aos mortos, um monumento ao Jumento
Desconhecido (como há em Paris o Túmulo do Soldado Desconhecido).
É uma ótima ideia. Aqueles jumentos, o Exército francês os
fez vir de barcos do Magreb, do Marrocos, porque os jumentos dessa região são
pequenos, dóceis e muito fortes. Eram capazes de transportar 150 quilos de
obuses. Rastejavam nas trincheiras levando munição para os soldados que se
encontravam em casamatas e fortins. Claro, os alemães descobriram e seus
artilheiros bombardearam os ventres dos pequenos jumentos marroquinos. Foi uma
carnificina. Aqueles que sobreviveram e retornaram às linhas francesas,
contentes de reencontrar seus senhores, estavam feridos. Então foram abatidos.
150 mil jumentos foram mortos em Verdun.
O solo de Verdun está repleto de valas comuns de jumentos.
Ali eram jogados os cadáveres desses animais tão gentis, suas pequenas coxas
quebradas, as pequenas patas rígidas, seus olhos, tão belos, tão indulgentes,
tão resignados. Como não chorar?
*TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Estação Música Total
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