22.9.12
Postado por
Sávio Hackradt
Drumond em casa |
Em 1925, o jovem poeta Carlos Drummond de Andrade
publicou n'A Revista, de Belo Horizonte, um artigo intitulado "Sobre a
tradição em literatura", no qual afirma que, em relação a Machado de
Assis, o melhor a fazer é repudiá-lo.
Por Hélio Guimarães
Aos 22 anos, cheio de ímpeto juvenil, Drummond considerava
Machado um romancista tão curioso quanto monótono, mestre de falsas lições, um
"entrave à obra de renovação da cultura geral".
Machado de Assis o Bruxo do Cosme Velho |
Três décadas mais tarde, em 1959, Drummond publicou o
poema "A um Bruxo com Amor", uma das mais belas homenagens de
escritor para escritor na literatura brasileira. O bruxo do título, obviamente,
é Machado; e o poema compõe-se quase inteiramente de frases e expressões
tiradas de crônicas, poemas, contos e romances do autor de Dom Casmurro.
O que teria se passado com Drummond?
Essa rendição a Machado tem muito a ver com a trajetória
do poeta, que ao longo dos anos se distanciou do modernismo iconoclasta,
aproximando-se mais e mais da tradição literária, compondo também poemas com
metros, rimas e formas clássicas.
Mas essa assimilação lenta e tardia da obra de Machado de
Assis mostra também como ele foi uma enorme pedra no caminho dos primeiros
modernistas, investidos do propósito combativo de romper com tudo o que soasse
a convenção e academicismo. Machado, fundador e presidente vitalício da
Academia Brasileira de Letras, foi também um emblema do espírito convencional e
acadêmico, aspectos seus muito valorizados nos anos compreendidos entre sua
morte, em 1908, e a renovação modernista.
Talvez por isso o silêncio quase sepulcral em torno de
Machado durante a década de 1920. Para se ter uma ideia da dimensão desse
silêncio, ao longo de toda a década foram publicados cerca de cem textos sobre
Machado nos jornais, revistas e editoras de todo o país; nos anos 30, foram
mais de 700.
A obra mais significativa de toda a década de 20 foi a
reunião da correspondência de Machado de Assis com Joaquim Nabuco, publicada em
1923 por Graça Aranha, com um longo prefácio do autor de Canaã. De resto,
o que dominou foi uma espécie das velhas questões associadas à obra - o humor,
as figuras femininas, a timidez do escritor... Além disso, certa ênfase no
lusitanismo da dicção e a insistência no academicismo do escritor calaram fundo
nos círculos modernistas, afastando-os da figura e da obra machadianas, muitas
vezes lembrada pela colocação de pronomes correta demais, portuguesa demais.
Dedicados os modernistas à reavaliação e à releitura do
nacionalismo oitocentista e da relação da cultura brasileira com as matrizes
europeias, a referência mais óbvia e mais positiva para eles era José de
Alencar, muito mais forte e presente do que a figura algo incômoda e
inclassificável de Machado de Assis.
Por isso, a visão do jovem poeta, que em 1925 ainda
assinava Carlos Drummond, não poderia oferecer síntese melhor do entrave que
Machado de Assis representava para as novas gerações. Ao contrário de Mário de
Andrade, que diria ser impossível amar Machado, Drummond declara seu amor, mas
também dá a medida do peso que Machado significava para a sua geração:
"Que cada um de nós faça o íntimo e ignorado
sacrifício de suas predileções, e queime silenciosamente os seus ídolos, quando
perceber que estes ídolos e essas predileções são um entrave à obra de
renovação da cultura geral. Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia
irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas
se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a
mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e
a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? A
resposta é clara e reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o
grande Machado de Assis".
Foram pouquíssimos os jovens da década de 20 que tiveram a
coragem de dizer aos quatro ventos o que Drummond escreveu, tentando digerir em
praça pública a presença ao mesmo tempo incontornável e indigesta de Joaquim
Maria.
"O escritor mais fino do Brasil será o menos
representativo de todos", escreve Drummond no mesmo artigo e certamente
não diz isso por insensibilidade, falta de inteligência ou afinidade com a
dicção machadiana - muito pelo contrário, difícil pensar num poeta mais machadiano
que Drummond. Dizia isso porque essa era a possibilidade de leitura que ele e
sua geração tinham àquela altura. "A razão está sempre com a
mocidade", sentencia Drummond. É preciso que a mocidade tenha razão a
qualquer custo e possa sacrificar seus ídolos, para não cair no imobilismo. Foi
um pouco isso que Drummond e seus colegas de geração fizeram ao virar as costas
para Machado durante a década de 20.
O longo silêncio de todos eles na década anterior pode ser
atribuído também ao fato de estarem absorvidos pelos próprios projetos
literários. Também é razoável supor, até pelo que escreveram mais tarde, que o
silêncio se devia ao desconforto causado pela figura de Machado de Assis, tão
associada ao academicismo e transformado numa espécie de medalhão.
Por isso, talvez não seja acaso que tanto Mário de Andrade
como Manuel Bandeira, quando escreveram sobre Machado, tenham dado tanta
atenção à sua poesia, ressaltando seu aspecto técnico e convencional, deixando
um pouco à sombra a prosa, certamente mais fora do esquadro e das expectativas
e, portanto, mais difícil de ser compreendida.
Ao longo dos anos 30, Machado receberia mais e mais
atenção da crítica, com os estudos renovadores de Augusto Meyer, Lúcia Miguel
Pereira e Astrojildo Pereira. Aos poucos, foi sendo assimilado também pelas
novas gerações de escritores. Em 1935, José Lins do Rego escreve um artigo
elogioso sobre a linguagem e o estilo de Machado. Por ocasião das comemorações
do centenário do nascimento, em 1939, os escritores modernos se manifestaram em
peso: Mário, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Jorge Amado, Graciliano
Ramos, Érico Veríssimo, Marques Rebelo, Bandeira...
E a lista cresceria muito até o fim dos anos 50, com as
homenagens, em 1958, pelos 50 anos de morte de Machado.
Assim, o poema-dedicatória que Drummond escreve para
Machado, e inclui em A Vida Passada a Limpo, pode ser lido também como a
rendição de toda a geração modernista, que aos poucos reduz a pó a estátua em
mármore do fundador da Academia Brasileira de Letras, para valorizar nele a
dúvida e o enigma. Nas palavras do Drummond "convertido", que tomou
emprestadas do próprio Machado:
"Todos os cemitérios se parecem,/ e não pousas em
nenhum deles, mas onde a dúvida/ apalpa o mármore da verdade, a descobrir/ a
fenda necessária;/ onde o diabo joga dama com o destino,/ estás sempre aí,
bruxo alusivo e zombeteiro,/ que revolves em mim tantos enigmas".
(*) Hélio Guimarães é professor da área de literatura
brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do CNPq
Fonte: Valor Econômico
Estação Música Total
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