17.9.12
Postado por
Sávio Hackradt
O Valor me convida para arriscar prognósticos
a respeito da crise internacional e avançar projeções sobre o desempenho da
economia brasileira. Não sei se abuso da confiança que me empresta o jornal,
mas vou traduzir livremente o significado de prognósticos. Sabedor das
precariedades que cercam as previsões em geral e especialmente as antecipações
dos economistas, farei "Perguntas ao Futuro".
Por Luiz Gonzaga Belluzzo, no Valor
Para começo de conversa, digo que as questões suscitadas
nas origens da vida moderna ainda não obtiveram resposta. Nos tempos de
prosperidade, elas hibernam e aí dos que ousam despertá-las. Mas no fragor das
crises elas voltam a assombrar o mundo dos vivos. Nesses tempos, a incômoda
pergunta não quer calar: em que momento homens e mulheres - sob o manto da
liberdade e de igualdade - vão desfrutar da abundância e dos confortos que o
capitalismo oferece em seu desatinado desenvolvimento?
O capitalismo da grande indústria, da finança e da
construção do espaço global, entre crises e recuperações, exercitou os poderes
de transformar e dominar a natureza - até mesmo de reinventá-la - suscitando
desejos, ambições e esperanças. A versão panglossiana desses prodígios nos
ensina que a admirável inclinação para revolucionar as forças produtivas hão de
aproximar homens e mulheres do momento em que as penas do trabalho subjugado
pelo mando de outrem seriam substituídas pelas delícias e liberdades do ócio
com dignidade.
Para muitos, estaria prestes a se realizar a utopia de
trabalhar menos para viver mais. Os avanços da microeletrônica, da informática,
da automação dos processos industriais já permitem vislumbrar, dizem os
otimistas, a libertação das fadigas que padecemos em nome de uma ética do trabalho
que só engorda os cabedais dos que nos dominam. Veja o caro leitor que alguns
cidadãos já podem trabalhar em casa, longe dos constrangimentos da hierarquia
da grande empresa e assim escolher à vontade entre o tempo livre e as fadigas
do labor.
Esses enredos foram contados nos bons tempos da
globalização e das bolhas financeiras e de consumo: a economia da inovação e da
inteligência estaria prestes a substituir a economia da fábrica, dos ruídos
atormentadores e dos gases tóxicos. As transformações tecnológicas e suas
consequências sociais ensejariam a proeza de realizar o projeto da autonomia do
indivíduo, aquele inscrito nos pórticos da modernidade. A autonomia do
indivíduo significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades
republicanas e do respeito ao outro.
O projeto da autonomia do sujeito é uma crítica permanente
e inescapável da submissão aos poderes - públicos e privados - que o cidadão
não controla. A globalização, o avanço tecnológico e transformação das formas
de trabalho estariam a realizar esta maravilhosa promessa da modernidade.
Até mesmo os críticos mais impiedosos reconhecem que a
economia capitalista engendrou formas de sociabilidade que descortinaram a
possibilidade de libertar a vida humana e suas necessidades das limitações
impostas pela natureza e pela submissão pessoal. A indústria moderna, essa
formidável máquina de eliminação da escassez, oferece aos homens e mulheres a
"realidade possível" da satisfação dos carecimentos e da libertação
de todas as opressões pelo outro.
Mas qual é a realidade que se esconde sob os pretextos
dessa fantasia?
Na marcha de sua realidade real, o capitalismo incitou os
anseios de realização pessoal, mas também fez emergir estruturas
técnico-econômicas e formas de dependência que agem sobre o destino dos
protagonistas da vida social como forças naturais que frequentemente destroem a
natureza, fora do controle da ação humana.
Em "Eros e Civilização", Marcuse falou da mútua
e estranha fecundação entre liberdade e dominação na sociedade contemporânea.
Para ele, a produção e o consumo reproduzem e justificam a dominação. Mas isso
não altera o fato de que seus benefícios são reais: amplia as perspectivas da
cultura material, facilita a obtenção das necessidades da vida, torna o
conforto e o luxo mais baratos, atrai áreas cada vez mais vastas para a órbita
da indústria. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo paga com o sacrifício de seu
tempo, de sua consciência e de seus sonhos nunca realizados.
A concorrência generalizada se impõe aos indivíduos como
uma força externa, irresistível. Por isso é preciso intensificar o esforço no
trabalho na busca do improvável equilíbrio entre a incessante multiplicação das
necessidades e os meios necessários para satisfazê-las, buscar novas emoções,
cultivar a angustia porque é impossível ganhar a paz.
O avanço tecnológico e os ganhos de produtividade não
impediram a intensificação do ritmo de trabalho. Essa foi a conclusão de
estudos recentes da Organização Internacional do Trabalho e de outras
instituições que lidam com o assunto. Entre os que estão empregados, o trabalho
se intensificou. Nos Estados Unidos, por exemplo, as horas trabalhadas
cresceram em todos os setores.
No outro lado da cerca, estão os que se tornaram
compulsoriamente independentes do trabalho, os desempregados. O desemprego
global cresceu muito no mundo desenvolvido, ao mesmo tempo em que o trabalho se
intensificou nas regiões para onde se deslocou a produção manufatureira. As
estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes
mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com
centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das
operações comerciais, industriais e de serviços em geral.
As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o
poder das corporações internacionalizadas sobre grandes massas de
trabalhadores, permitindo a "arbitragem" entre as regiões e nivelando
por baixo a taxa de salários. As fusões e aquisições acompanharam o
deslocamento das empresas que operam em múltiplos mercados. Esse movimento não
só garantiu um maior controle dos mercados, mas também ampliou o fosso entre o
desempenho dos sistemas empresariais "globalizados" e as economias
territoriais submetidas à regras jurídico-politicas do Estados Nacionais. A
abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência
ao monopólio e debilitam a força dos sindicatos e dos trabalhadores
"autônomos", fazendo periclitar a sobrevivência dos direitos sociais
e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência.
Restringem, portanto, a soberania estatal e impedem que os
cidadãos, no exercício da política democrática, tenham capacidade de decidir
sobre a própria vida.
As reformas realizadas nas últimas décadas cuidaram de
transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que
buscaram o Estado e sua força coletiva para enfrentar a concorrência
desaçaimada e, nos tempos de crise, limitar as perdas provocadas pelos
episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre
as empresas no espaço global não só acelerou o processo de concentração da
riqueza e da renda como submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.
Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e
trabalhadores são inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade
observadas no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 70
- tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do
capitalismo "turbinado" e financeirizado, os frutos do crescimento se
concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam
direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduram a ameaça
do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a
exclusão social.
Para os mais fracos, a "liberação" do esforço e
das penas do trabalho se realiza sob a forma do desemprego, da crescente
insegurança e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da
exclusão social.
Nos Estados Unidos, os fatores decisivos para o
comportamento decepcionante dos rendimentos da maioria da população foram, sem
dúvida, a diminuição do poder dos sindicatos e a redução no número de
sindicalizados, o crescimento do trabalho em tempo parcial e a título precário
e a destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria de
transformação, sob o impacto da concorrência chinesa.
O lento crescimento da renda das famílias de classe média
foi acompanhado pelo aumento das horas trabalhadas, por conta da maior
participação das mulheres, das casadas em particular, no mercado de trabalho.
Nas famílias com filhos, as mulheres acrescentaram, entre 1979 e 2000, 500
horas de trabalho ao total despendido pelo casal.
Não resta sequer a ilusão de que a maior desigualdade foi
compensada por uma maior mobilidade das famílias e dos indivíduos, desde os
níveis mais baixos até os mais elevados da escala de renda e riqueza. Para
surpresa de muitos, o estudo mostra que a mobilidade social nunca foi tão baixa
no país das oportunidades. Há 40 anos, se alguém perdesse o emprego, poderia se
mobilizar contra o patronato ou o governo, acusando-o de estar executando uma
política econômica equivocada. Ainda que se possa fazer isso hoje,
provavelmente o governo vai responder que tudo ocorreu como consequência
inevitável da globalização.
Escrevendo em 1933, das profundezas da Grande Depressão,
Keynes confessou que, nos momentos de crise grave, a relação entre a observação
crítica e as soluções pode se esgarçar. Ele dizia: "O capitalismo
internacional e individualista decadente, sob o qual vivemos desde a Primeira
Guerra, não é um sucesso. Não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é
virtuoso - "and it doesn't deliver the goods". Em suma, não gostamos
dele e já começamos a menosprezá-lo. Mas, quando imaginamos o que se poderia
colocar no seu lugar, ficamos extremamente perplexos."
Na crise atual, assim como nos anos 30 do século passado,
os homens e mulheres do poder deliram entre as fantasias do eterno retorno do
mesmo e as ilusões do decisionismo incondicionado e descolado da correlação de
forças sociais. Para uns, os da margem esquerda, se houver vontade política,
tudo é possível. Na outra margem, a da direita, multiplicam-se as falácias do
economicismo, a capitulação diante da "objetividade" das condições
existentes.
Nos Estados Unidos dos republicanos e na Europa da senhora
Merkel está em curso uma tentativa de reestruturação regressiva. David Brooks,
colunista do "The New York Times" e autor do livro "Bobos in
Paradise", escreveu um artigo intitulado "O que pensam os
Republicanos". Os Republicanos, diz Brooks, pensam que o capitalismo
americano está ameaçado pela segurança excessiva concedida aos cidadãos pelo
Estado do bem-estar, em detrimento do espírito de iniciativa e da inovação. A
fuzilaria dos ultraconservadores concentra a pontaria na proteção à velhice e
aos doentes. Caso esse peso morto não seja extirpado, a sociedade americana
será entregue às letargias da estagnação.
"Nos Estados Unidos, assim como na Europa, afirmam os
republicanos, o Estado do bem-estar não oferece segurança nem dinamismo. A rede
de segurança é tão dispendiosa que deixará de existir para as próximas
gerações. Ao mesmo tempo, o atual modelo transfere recursos dos setores
inovadores para setores estatais já inchados, como saúde e educação. O modelo
de bem-estar social privilegia a segurança em lugar da inovação. Esse modelo...
se tornou uma máquina a gigantesca que redistribui dinheiro do futuro para a
população mais velha."
Cada vez mais inclinada à direita, a opinião republicana
deplora o peso excessivo do Estado munificente e investe contra as tentativas
de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do
capitalismo. A visão republicana da economia e da sociedade advoga abertamente
a concorrência darwinista: a sobrevivência do mais forte é a palavra de ordem.
Tombem os fracos pelo caminho.
A ação do Estado, particularmente da sua prerrogativa
fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica
de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no
processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do
mercado capitalista.
Cresce a resistência à utilização de transferências
fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade
impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque a globalização, ao
tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos
integrados, desarticulou a velha base tributária do Estado do bem-estar,
erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ética da solidariedade é substituída pela ética da
eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação
de desequilíbrios sociais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado
forte resistência na casamata republicana. Não há dúvida de que este novo
individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida
pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na
era keynesiana.
Hoje, o novo individualismo encontra reforço e sustentação
no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, que
são criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização das grandes
empresas.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos
bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e
desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da
"deslegitimação" do poder administrativo e na desvalorização da
política. Aparentemente estamos numa situação histórica em que a "grande
transformação" ocorre no sentido contrário ao previsto por Karl Polanyi: a
economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade.
A resposta esperançosa à Pergunta ao Futuro depende
crucialmente da capacidade de mobilização democrática e radical dos Deserdados,
os perdedores na liça da concorrência global. Desgraçadamente, no momento em
que escrevo este artigo, os espaços de informação e de formação da consciência
política e coletiva são ocupados por aparatos comprometidos com a força dos
mais fortes e controlados pela hegemonia das banalidades. Desconfio que o mundo
não padeça apenas sofrimentos de uma crise periódica do capitalismo, mas, sim,
as dores de um desarranjo nas engrenagens que sustentam a vida civilizada, sob
o olhar perplexo e impotente das vítimas.
Estação Música Total
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