CALANGOTANGO não é um blog do mundo virtual. Não é uma opinião, uma personalidade ou uma pessoa. É a diversidade de idéias e mãos que se juntam para fazer cidadania com seriedade e alegria.

Sávio Ximenes Hackradt

17.2.12


CINEMA

Por Carlos Emerenciano*

“(...) Eu só peço que em vossas cartas, ao narrarem tais atos tristes e fatais, falem de mim como eu sou. Que não diminuam nem usem de malícia na escrita. Falem de um homem que sendo pouco sábio, amou muito; De um homem não ciumento, mas que ao ser provocado, irou-se ao extremo; De um homem cuja mão, semelhante a do hindu, enjeitou a pérola mais fina de toda sua tribo ...”.  (tradução: Enéias Farias Tavares)

Após se dirigir aos presentes, Otelo, tomado por um remorso insuportável, crava no seu peito um punhal e tomba ao lado do corpo inerte de sua amada Desdêmona. Diante da constatação de que matou uma inocente – a sua esposa não o traíra, como lhe fizera pensar o malévolo e invejoso Iago -, não restou ao homem desesperado outra alternativa.

A dramaticidade presente em “Otelo” transformou a obra-prima em uma das peças de Shakespeare mais cultuadas e encenadas em todo mundo (a que mais recebeu, por exemplo, encenações na Broadway). Convertida em ópera pelo italiano Giuseppe Verdi, no final do século XIX, a tragédia do genial dramaturgo também ganhou vida no cinema. Entre os atores que levaram o personagem para a telona, destaco Emil Jannings (1922), Orson Welles (1952) e Laurence Olivier (1965).


A história universal e atemporal permitiu, ainda, a sua adaptação a outras realidades, como se vê em “Jogo de intrigas” (O/ 2001). O cenário é o de uma escola americana de ensino médio da atualidade e o “Otelo” (Odin), um jovem negro que se destaca jogando basquete, o que lhe traz popularidade entre os outros estudantes. Afinal, ciúme, inveja, ira, vingança, desespero são sentimentos que acompanham a trajetória do ser humano desde sempre, comprovando a sentença do “Eclesiastes” de que “não há nada de novo debaixo do sol”.

Imaginem, portanto, caros leitores e leitoras, diante da intensidade do personagem shakespeareano, como deve ser difícil, exaustivo e complexo, interpretá-lo. Mais ainda: ao vivê-lo nos palcos, como apartá-lo de sua vida. Foi esse o argumento utilizado pelos roteiristas de “Fatalidade” (A double life, 1947), dirigido por George Cukor (“Núpcias de escândalo”/ The Philadelphia Story, 1940; “Minha bela dama”/ My fair lady, 1964). Um ator consagrado, Anthony John (Ronald Colman), entrega-se de tal forma à interpretação de Otelo, que passa a incorporar traços de sua personalidade ciumenta e doentia.

A atuação do inglês nesse filme rendeu-lhe o Oscar de melhor ator de 1948. Realmente, sente-se todo o drama do personagem, perdido entre duas identidades, até o momento em que não distingue mais o que é real e ficção. Tanto nas cenas de palco, em que interpreta o “Mouro de Veneza”; como fora dele, quando se percebe, principalmente através de um perturbador olhar perdido, a loucura batendo à porta; Ronald Colman impressiona.

Guardadas as diferenças, principalmente quanto à época de realização dos filmes, o conflito vivido por Anthony (Ronald Colman) assemelha-se muito ao de Nina Sayers (Natalie Portman) em “Cisne Negro” (Black Swan, 2010). Ambos são levados, pela entrega sem limites à arte de atuar, a vivenciar o trágico fim dos personagens por eles interpretados no palco.

Eis uma história que infelizmente se repete. Um homem, movido por ciúmes, levado a matar uma mulher. Por dia, onze Desdêmonas são assassinadas no Brasil nessas circunstâncias. Que a catarse provocada pela tragédia de Shakespeare nos auxilie a refletir e enfrentar essa  realidade que teima em existir.

*Carlos Emerenciano - Apreciador de um bom filme, dividirá com os leitores suas impressões sobre cinema todas as sextas-feiras.
Twitter: @cemerenciano
e-mail: aemerenciano@gmail.com

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