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Sávio Ximenes Hackradt

14.2.12


É possível, 90 anos depois, exaltar um movimento que criticava a apologia ao passado sem ferir a sua proposta? Segundo o doutor em letras e literatura Marcelo Bulhões, para não correr o risco de contrariar o espírito da Semana de Arte Moderna de 1922, a melhor homenagem é não “mumificá-la”, nem reverenciá-la como um monumento grandioso.

Portal Vermelho, por Joana Rozowykwiat

Programa da Semana de Arte Moderna publicado no jornal

Os contestadores artistas que mostraram seu trabalho nos salões do Teatro Municipal de São Paulo pregavam a ruptura com velho e condenavam a apologia ao que era passado, estabelecido e tradicional. Hoje, tornaram-se eles mesmos verdadeiros “clássicos” brasileiros.

 “Eles eram contra esta atitude de exaltação, de glorificação vazia, essa apologia passadista. O que é hoje, 90 anos depois, comemorar a Semana de 1922? Será que transformar a Semana num monumento, num mausoléu ou numa estátua de bronze não vai exatamente contra o que eles se insurgiram?”, questiona Bulhões, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em conversa com a reportagem do Vermelho.

De acordo com ele, fazer da Semana de Arte Moderna um tema para um “elogio pomposo e retórico” – sem perceber as contradições e impasses que a marcaram – é cometer um “equívoco de base”, um verdadeiro contrassenso. “A melhor homenagem a 22 é não fazer reverências e pensar se é possível, ainda, ter um permanente espírito de pesquisa, transformação, revisão, transgressão e não repetição”, avalia.

Neste aniversário do evento que foi um marco do modernismo brasileiro, o Vermelho publica abaixo tópicos da conversa com Marcelo Bulhões.

O cenário


“A Semana de 22 foi patrocinada pelo capital da elite paulista - a oligarquia cafeeira e a força industrial -, para marcar o centenário da independência do país, num momento em que São Paulo buscava se afirmar no cenário nacional. Já era a cidade que mais crescia. Busca marcar, portanto, uma espécie de hegemonia cultural em relação ao país.

Ao mesmo tempo, a Semana de 22, é um ponto de chegada de alguns movimentos e ações de intelectuais e artistas que já se davam antes da década de 20. São Paulo já era - guardados os limites da vida cultural brasileira – um centro, onde havia exposições, uma vida cultural artística muito agitada. E uma atividade econômica ligada à difusão de arte”.

Playboys modernos e as contradições de 22

“Quem vai fazer a Semana de 22 são jovens que vivem no circuito da elite paulistana. Mesmo que alguns não fossem financeiramente privilegiados, eles eram os playboys da década de 20. Tinham formação europeia, viajam muito, falavam mais de uma língua.

A Semana de 22 guarda, então, uma contradição que se distribui em algumas dicotomias. Do ponto de vista institucional, queria romper com o passado e se proclama revolucionária, mas era bancada pelo mecenato industrial oligárquico.

Do ponto de vista artístico, era um evento multimídia que combatia o tradicionalismo nas artes, mas que tinha figuras que transitavam pelas artes do passado. (O escritor) Menotti Del Picchia, por exemplo, era um figurão que não era avesso ao contato com intelectuais que eram chamados de passadistas.

Oswald (de Andrade), um dos maiores líderes do movimento - do ponto de vista da sua atitude propagandística e polemista de 22, de grande provocador-, tinha contato com poetas que seriam combatidos pela semana de 22, como o Olavo Bilac.

Então são jovens, playboys, que participam da elite, têm trânsito com o passadismo e que vão querer fazer a revolução, ou uma atualização do Brasil com o que tinha ocorrido na Europa já fazia praticamente vinte anos. Eles reivindicam a correção desse atraso.

Outra contradição fundamental é entre a afirmação do espírito nacional e a importação do vanguardismo estrangeiro. Afinal, é uma semana que se busca brasileira”.

Futurismo, integralismo e antropofagia

“Nós não temos um só modernismo. O grupo (que organiza o evento) não é tão coeso assim. E, depois da Semana , essas diferenças vão de manifestar. É possível falar então em três vertentes do modernismo.

Há uma corrente mais futurista, que tinha a ideia de atualizar o Brasil com o compasso dos avanços tecnológicos – colocar a arte no patamar da velocidade da máquina, da técnica, do progresso -, muito inspirada no (poeta italiano Filippo) Marinetti. Muitos transitam por aí, principalmente Graça Aranha e Menotti Del Picchia.

Uma outra corrente é muito nacionalista - no sentido fascista do termo -, de um nacionalismo conservador, à direita. Há quem diga que era uma falsa vanguarda, reacionária. Era encabeçada pelas figuras do Cassiano Ribeiro e Plínio Salgado, líder do integralismo, que era a versão fascista brasileira.

E há a vertente oposta a essa, que era a antropofágica, liderada por Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp. Essa vertente foi a que cujos frutos foram os mais importantes no desenvolvimento da cultura brasileira no período posterior. Foi a que melhor deu resposta a esses impasses, principalmente à questão de como ser uma vanguarda que se inspira na Europa e, ao mesmo tempo, diz que é importante romper o laço com a Europa”.

Deglutir

“A cultura brasileira tinha vivido até então o seguinte impasse: imitar tudo que vem de fora ou, ao contrário, se fechar a tudo que vem de fora. Imitar ou ser xenófobo. As culturas americanas, de forma geral, já são culturas de transplante. A condição da colonização já nos traz a inevitável situação de absorção da cultura europeia. Diante disso, o que fazer?

Oswald de Andrade fala então em fazer nem uma coisa nem outra. Ou seja, pegar o elemento exterior e ter uma atitude ativa em relação a ele, transformá-lo. É aquilo que o (crítico) Antônio Cândido chama de a dialética do local e do cosmopolita”

Legado

“As conseqüências disso (antropofagia) são imensas para a cultura brasileira. Boa parte das coisas boas que seriam feitas depois teve como primeiro momento de consciência isto daí. Oswald de Andrade brincava com as palavras, dizia que, ‘no futuro, a massa vai comer os biscoitos finos que eu fabrico’. Ele foi um profeta de certa forma, porque o movimento concretista, a tropicália, o Teatro Oficina, a própria bossa nova serão, nesse sentido, desdobramentos - mais ou menos conscientes - do espírito de 22”.

Faxina na língua portuguesa

“Ressalvados alguns equívocos, suas contradições e limites, 22 traz como grade legado o fato de que a Semana representa a defesa de uma escrita que se aproxime da linguagem oral. Faz uma espécie de faxina na língua portuguesa falada aqui.

O Brasil foi marcado, durante o processo colonial, por uma cultura oral, e a vida intelectual não se dava senão pelo ambientes do púlpito – o palanque político, jurídico – ou pelo ambiente religioso. Então o Brasil adquiriu uma expressão oral muito retórica, no mal sentido – o falar difícil, empolado.

O modernismo foi muito contrário a isso. Deu uma paulada na linguagem rebuscada como forma de poder, nessa escrita fossilizada. E agiu contra toda essa atitude de exaltação, de glorificação vazia, essa apologia passadista. E, principalmente, contra os escritores associados a essa linguagem rebuscada, em que inteligência e criatidade literária eram sinônimos de falar difícil. Criticaram grande pilares, como Olavo Bilac e Ruy Barbosa”.

Mitos caíram

“Houve um tempo em que a Semana de 22 foi muito exaltada, dizia-se que foi a partir de 22 que tudo começou (para a cultura brasileira), que foi uma revolução, uma espécie de marco zero. Mas também houve uma outra tendência de desvalorização máxima. (Pessoas que diziam que) a semana foi uma inconseqüência juvenil, de porra-loucas que não sabiam o que queriam. Hoje, os ponteiros dessa balança estão mais equilibrados.

Claro que a semana foi muito importante, mas não foi um marco zero. Alguns mitos caíram, como, por exemplo, dizer que São Paulo era tudo de modernidade e o Rio de Janeira era tudo de passadista. A Semana aconteceu em São Paulo, porque a cidade era a vanguarda industrial da década de 20; enquanto o Rio era ligado à Academia Brasileira de Letras, ao capital do Império, ao capital da República. Mas a coisa não era bem assim. Tanto que dois cariocas de altíssimo peso vêm para a Semana de Arte - Di Cavalcanti e Villa-Lobos.

Outra coisa que foi sendo atenuada foi a visão de que tudo que veio antes era ultrapassado, que 22 foi uma coisa que não teve precedentes que já apontavam para uma modernização”.

Nacionalismo em tempos de globalização

“Sem dúvida, o dilema cosmopolitismo versus nacionalismo não existe mais. Até a década de 1960, isso existia. Mas, em 2012, essa pauta caiu. Com o advento de uma sociedade internacionalizada, com internet, com esse trânsito comunicacional irreprimível, esses dilemas se dissolveram.

Por outro lado, curiosamente, aquilo que se chama globalização, esse novo cenário, não representou o esvaziamento e a dissolução de manifestações regionais, da cultura popular - o que torna tudo muito mais complexo. A mundialização da comunicação até nos permitiu conhecer mais culturas locais. Embora essas culturas locais não sejam algo estático. Elas se transformam. Um exemplo disso é o manguebeat, que pegou o coco, a embolada, o maracatu, mas relacionou isso com o rock, o hip rock.

Existem várias dobras culturais nesse mundo globalizado que indicam que não houve uma pasteurização (das culturas). Houve um trânsito. E a pauta local-internacional caducou. Nenhuma cultura fica inerte, senão vira museu”.

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