7.1.12
Postado por
Sávio Hackradt
Ocupar
significa enfrentar a lógica antidemocrática do poder, redefinindo o papel do
cidadão na ‘rua global’
Estadão**
- Saskia Sassen*
Ocupar
não é o mesmo que demonstrar. Muitos dos protestos do ano passado - Praça
Tahrir, os indignados, Ocupe Wall Street (OWS) e outros - deixam nítido o fato
de que ocupar significa estabelecer um novo território. Transformar o que era
visto meramente como um espaço num território. Nesse processo, ocupar também
cria um pouco de história.
Para pesquisadora, manifestantes do OWS fazem história ao transformar o que era mero espaço público. Foto Mario Tama/Getty Images |
Território
é um vetor estratégico em todos esses tão diversos processos de ocupação. No
sentido em que estou usando o termo, território é uma condição complexa na qual
se insere a lógica do poder e da reivindicação, algo que implica muito trabalho
para criar e não pode ser reduzido apenas à factibilidade elementar do espaço
ou da terra. Assim, ocupar é um processo que reelabora, mesmo temporariamente,
a frequentemente antidemocrática lógica do poder incrustada no território. E
com frequência também redefine o papel dos cidadãos, na maior parte debilitados
e fatigados depois de décadas de injustiças e desigualdades crescentes.
Na
verdade, as ocupações têm revelado até que ponto a realidade do território vai
além de seu significado predominante em todo o século 20: o do território de
soberania nacional. Dependendo da região do mundo, durante um século ou mais a
complexa categoria que é o território ficou restrita a um único significado:
território de soberania nacional.
O
movimento Ocupe Wall Street entrou num dos territórios estratégicos das
finanças globais e, durante dois meses de trabalho duro e muita deliberação
coletiva, estabeleceu um novo território - físico e conceitual - com sua
própria lógica de organismo e representação descentralizados. O movimento Ocupe
Oakland se inseriu num território estratégico do comércio global em novembro,
quando temporariamente fechou o porto da cidade, o quarto maior dos Estados
Unidos.
A
maneira como a Praça Tahrir foi usada durante a revolução egípcia - o trabalho
de erigir um acampamento e mantê-lo habitável e pacífico durante vários meses -
da mesma maneira transformou a praça num outro tipo de território. Los
Indignados, na Espanha, não realizaram apenas manifestações: eles estabeleceram
um acampamento com múltiplas funções.
Os estudantes que ocuparam a
Universidade de Porto Rico um ano atrás durante dois meses, cercados pelo
Exército, criaram algo parecido a uma sociedade e economia alternativas,
cuidando do seu próprio sustento, ensinando várias habilidades um ao outro.
Essas
e tantas outras ocupações exigiram trabalho e estratégia. Diria que é um
movimento social multilocalizado, criado a partir do cruzamento de um modo
político global e das especificidades e história locais. Cada um desses lugares
tem a própria genealogia de ações, histórico de violência e libertação e
geografia do poder. Mas nesta atual era global algumas condições estruturais
estão presentes em mais e mais países: em todos eles observamos o crescimento
das desigualdades e a expulsão das jovens gerações da classe média de um
projeto de vida de classe média.
No
seu início, a criação do território nacional envolveu conquistar autonomia de
uma potência dominante - como ocorreu com os Estados Unidos no princípio e
também no caso dos movimentos de independência na África e muitas outras lutas
em todo o mundo. Esses foram momentos importantes, quando a lógica do poder e
da outorga de poder coincidiram numa tentativa de se criar sistemas políticos e
socioeconômicos mais igualitários. Como resultado, surgiram governos de certa
maneira receptivos às demandas das classes médias emergentes.
Com
mais frequência, contudo, essas primeiras lutas para criar território próprio
foram frustradas por elites que se apoderaram abusivamente do poder, deixando
os cidadãos empobrecidos e sem nenhum direito de representação. Essa decadência
não seria apenas interna, contudo. Estabelecer o próprio território também pode
levar à colonização dos antigos habitantes do lugar ou, no decorrer do tempo,
significou entrar furtivamente no território de outros. O que nos leva de volta
às contradições do território nacional: alguns Estados-nação foram criados no
rastro de vastas geografias imperiais de exploração e dominação. Num sentido
importante, contudo, territórios colonizados são constituídos por meio de uma
lógica distinta daquela do território feito nação, que é impulsionado, pelo
menos no início, pela lógica da autodeterminação. Hoje, era em que vemos a
decadência do Estado liberal, a lógica do poder não coexiste com a lógica da
outorga de poder - ela coexiste com o empobrecimento crescente da classe média
e a perda dos direitos do cidadão.
A
decadência do “projeto nacional” em parte decorre da emergência de vetores
territoriais diferentes. Observamos a ascensão de novos agrupamentos de uma
miscelânea de território, autoridade e direitos outrora firmemente assentados
nas estruturas nacionais. O espaço operacional das empresas globais é um
agrupamento de uma miscelânea de múltiplos territórios nacionais. Assim também
é a rede das cidades globais. Esses agrupamentos emergentes na maior parte
atravessam o binário do “nacional versus global”. Os movimentos “Ocupe” também
são agrupamentos emergentes de uma miscelânea de vários territórios nacionais
(e globais). Sua reivindicação do espaço público é uma resposta às deficiências
cada vez mais palpáveis da lógica do Estado-nação.
Esses
movimentos lançaram um processo emergente que considero como da “rua global”,
um lugar para se criar o social. Esse modo de formação do público é bem
diferente da tradição europeia do espaço público, que é o lugar para
implementar práticas que já se tornaram um ritual. O movimento “rua global” liberta
o território, como categoria e como capacidade; ele transforma a rua num espaço
para reformular o social e o político por aqueles que não têm acesso aos
instrumentos de poder estabelecidos dentro dos limites do território de
soberania nacional. É por isso que os acampamentos no Cairo, Nova York e em
todos os outros locais são um elemento crucial em meio às mudanças mais
profundas que estão desestabilizando a territorialização nacional da vida
política e social. E é por isso que as tentativas para fazer acampamentos na
Síria e no Bahrein são importantes, mesmo se fracassarem.
O
espaço mais amplo permitindo essa ocupação em múltiplos lugares é a rede das
cidades globais em todo o mundo, cujo número vem aumentando, em parte como
resultado das necessidades territoriais maiores do capital global e das
finanças globais. E aqui reside uma interessante dialética entre o crescimento
das cidades globais e o crescimento dos movimentos de ocupação. A cidade surge
como um espaço em que os impotentes podem fazer história; não é o único espaço,
mas é um espaço crucial. Seja no Egito, nos Estados Unidos ou qualquer outro
lugar, é importante que o objetivo dos ocupantes não seja o de arrebatar o
poder.
Inversamente,
eles estiveram e estão engajados em trabalhar para a cidadania, expor as falhas
e os erros da política e da sociedade. No meu livro Territory, Authority,
Rights (Território, Autoridade, Direitos - 2006), abordei essa questão de como
os impotentes podem fazer história e, se o conseguirem, como poderão fazer isso
sem se tornar necessariamente pessoas com o poder nas mãos. Isso nos mostra que
a impotência não é simplesmente uma condição absoluta que pode ser nivelada
para se tornar ausência de poder. O fato de as pessoas se tornarem presentes e,
importante, se tornarem visíveis umas para as outras, pode alterar a natureza
da sua impotência. Com base em certas condições, a impotência pode se tornar
algo complexo, e com isso quero dizer que ela pode conter a possibilidade de
criar o político, o cívico, ou a história.
A
violência com que várias dessas ocupações pacíficas têm sido confrontadas pela
polícia e pelos soldados do Exército é indicação de quão ameaçadora é a
ocupação. E o quão difícil e desordenado tem sido neutralizar o projeto dos
ocupantes nos mostra que o Estado tem que trabalhar para restaurar o território
no seu antigo formato e se reinserir na lógica mais antiga.
*Saskia
Sassen é socióloga da Universidade Colúmbia e autora de Sociologia da
Globalização (ARTMED).
**
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO ESTE TEXTO É PARTE DE UM ENSAIO DA AUTORA PARA A
REVISTA ARTFORUM
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