22.7.12
Postado por
Sávio Hackradt
No Chile, como no Brasil, houve uma Lei de Anistia
surgida no lusco-fusco da ditadura. No Chile, ao contrário do Brasil, a Justiça
determinou que crimes cometidos sob o manto do terrorismo de Estado não podem
ser anistiados. No Chile, a verdade está sendo estabelecida, a memória está
sendo resgatada e a Justiça está sendo aplicada. Enquanto isso, na Colômbia,
Uribe continua dedicando cada segundo de cada hora de cada um de seus dias a
conspirar contra a própria – e pobre – biografia.
Por Eric Nepomuceno, na Carta Maior
Primeira anotação:
O Chile resolveu acelerar a busca pela verdade, a
recuperação da memória e aplicação da justiça. O mesmo juiz Mario Carroza que
reabriu as investigações sobre as mortes de Eduardo Frei, Salvador Allende e
Pablo Neruda, abriu um processo contra dois coronéis da reserva da Força Aérea
Chilena, Edgar Ceballos Jones e Ramón Cáceres Jorquera, como responsáveis pelas
torturas que levaram à morte o general Alberto Bachelet Martínez.
Pai de Michelle Bachelet, a primeira mulher a presidir o
Chile (entre 2006 e 2010), ele sofreu um infarto agudo do miocárdio no dia 12
de março de 1974, quando estava preso no Cárcere Público de Santiago. Tinha 51
anos. Em 1969 já havia sofrido um infarto, e necessitava acompanhamento médico.
Preso na Academia de Guerra do Exército, foi pendurado em pau de arara
(contribuição brasileira na técnica do horror), levou choques elétricos, foi
obrigado a permanecer de pé por 30 horas seguidas, e, encapuzado, apanhou de
antigos subordinados. O juiz determinou, na abertura do processo, que existe
uma relação direta entre a morte da vítima ‘e seu último interrogatório, que
produziu um descompasso em sua patologia cardíaca’. Os coronéis Ceballos e
Cáceres já estão presos, acusados por outros crimes.
Pela primeira vez em 38 anos, a justiça chilena trata da
morte do general Bachelet, amigo de Salvador Allende, militar democrata e
cumpridor dos desígnios da Constituição. Tudo começou com a denúncia oferecida
pela Agrupação de Familiares de Executados Políticos em junho de 2011, quando
Michelle Bachelet já não era presidente. Essa denúncia se refere a 700 mortes
ocorridas durante a ditadura de Pinochet e que jamais foram esclarecidas.
Nenhum tribunal tinha conseguido provar que o general
Alberto Bachelet morreu das consequências de torturas. Agora, surgiu um
relatório secreto do Instituto Médico Legal, descoberto pela comissão da
verdade e entregue ao juiz Mario Carroza.
No Chile, como no Brasil, houve uma Lei de Anistia surgida
no lusco-fusco da ditadura. No Chile, ao contrário do Brasil, a Justiça
determinou que crimes cometidos sob o manto do terrorismo de Estado não podem
ser anistiados.
No Chile, a verdade está sendo estabelecida, a memória
está sendo resgatada e a Justiça está sendo aplicada.
Segunda anotação:
Ter sido presidente pode ser um problema para determinado
tipo de pessoa. Certos ex-presidentes podem acabar sendo um problema sério para
determinado país.
A Colômbia que o diga. Agora mesmo um ex-presidente
colombiano, Álvaro Uribe, anda em guerra aberta contra seu ex-pupilo, o
sucessor construído supostamente à sua imagem e semelhança, Juan Manuel Santos.
Não se trata de mera guerra de vaidades. A situação vai
além, é séria, e pode ter consequências ainda mais funestas das que já produziu
e produz.
Uribe e Santos pertencem à mesma estirpe conservadora de
um país rachado entre os que têm muito e os que quase já não têm nem
esperanças. Uns são poucos – os que têm muito. Outros são muitos – os que não
esperam nada além de sobreviver ao dia a dia. Entre esses dois grupos existe um
país que vai bem, que cresce a níveis impressionantes, embora o mais
impressionante seja a manutenção de uma desigualdade atroz. O mesmo dilema de
sempre: mudam os que mandam para dentro, não mudam os que mandam de fora. E
que, em última instância, são os únicos que mandam de verdade.
Enquanto isso, e não por acaso, Washington – e, claro, o
sacrossanto mercado – tem na Colômbia um aliado incondicional.
No caso da guerra aberta que Uribe declarou a Santos há
elementos que merecem certa análise. O atual presidente foi um pouco de tudo de
seu antecessor. Foi seu ministro de Defesa, foi seu pupilo dileto, foi executor
de parte substancial do plano de combate à guerrilha, foi seu menino mimado
junto às Forças Armadas, foi de um silêncio obsequioso diante das denúncias de
corrupção dos paramilitares mais sanguinários. E, finalmente, foi depositário
da fé absoluta nas bondades de se submeter aos desejos dos Estados
Unidos.
Eleito, Juan Manuel Santos mudou um pouco. Vem tentando, sem maiores êxitos, terminar com o conflito entre governo e as FARC – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Mas, aos olhos de Uribe, comete um pecado capital: tenta não apenas pela via militar, mas também pelo diálogo.
Eleito, Juan Manuel Santos mudou um pouco. Vem tentando, sem maiores êxitos, terminar com o conflito entre governo e as FARC – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Mas, aos olhos de Uribe, comete um pecado capital: tenta não apenas pela via militar, mas também pelo diálogo.
Deixou que denúncias contra os paramilitares se
transformassem em processos judiciais. Alguns foram presos. Melhorou
sensivelmente as péssimas relações que seu antecessor tinha com a Venezuela, e
o resultado tem sido benfazejo pelo menos em termos de comércio bilateral.
A soma disso tudo é, para Uribe, inadmissível.
Existem, porém, atenuantes, que Uribe parece ignorar. As
relações com Washington, por exemplo, vão muito bem. Tão bem, que a Colômbia
volta e meia tenta se arvorar de interlocutor privilegiado com o governo dos
Estados Unidos.
De resto, o que os colombianos vivem é um pouco mais do
mesmo de sempre: urgências sociais não atendidas, lacunas tenebrosas em termos
de política tributária, uma reforma jurídica que não acontece nunca, uma
reforma agrária que sequer chegou a ser delineada, a submissão quase humilhante
do Estado ao capital estrangeiro. Nada diferente do que acontecia nos tempos do
agora inimigo do presidente.
Se tudo continua igual ou quase, qual a razão da ira de
Álvaro Uribe? A ânsia, a fome insaciável de quem quer transformar a condução do
país em patrimônio pessoal.
Talvez isso explique a esdrúxula situação vivida pela
quarta economia da América do Sul, a quinta da América Latina, peça importante
no jogo desenhado por Washington para a região.
Entre criador criatura, teria sido preciso escolher um de
dois caminhos: governar para dentro, ou ser governado de fora.
Santos escolheu os dois. O país pagará o preço, enquanto
Uribe continua dedicando cada segundo de cada hora de cada um de seus dias a
conspirar contra a própria – e pobre – biografia.
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