9.7.12
Postado por
Sávio Hackradt
Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de
socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por novas obras
Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um
adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o
Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a
postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo.
Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o
conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo
a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma
geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores.
Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu
método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do
começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no
socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do
capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.
Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a
intenção de ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por
que esse esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito
pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que,
quando se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são
ligadas à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico.
Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no
estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não
seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode
divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem
comum.
Brasil de Fato – O seu método de análise da
literatura parte da cultura para a realidade social e volta para a cultura e
para o texto. Como o senhor explicaria esse método?
Antonio Candido – Uma coisa que sempre me preocupou
muito é que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não
fazem. Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho
muita influência marxista na minha formação e também muita influência da
chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por
socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento
sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma
obra literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais
minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário
norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo
de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor,
da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando
ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a
primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na
minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a minha formação, do
social. Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas
que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da
sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim,
portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade
social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso,
tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um
esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a
realidade. Há certas obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social
porque ela é pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente –
como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a
carga social. Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico
tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que
pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a
classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam
muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me
permite tratar de um número muito variado de obras.
Brasil de Fato – Teria um tipo de abordagem
estética que seria melhor?
Antonio Candido – Não privilegio. Já privilegiei.
Primeiro o social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um
jovem crítico eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista
escrevendo com posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas,
por exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que
passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que
depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem
uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte:
estou interessado em saber como o externo se transformou em interno, como
aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca
o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a
carne. Mas o externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar
o croquete, dizer de onde ele veio.
Brasil de Fato – O que é mais importante ler na
literatura brasileira?
Antonio Candido – Machado de Assis. Ele é um escritor
completo.
Brasil de Fato – É o que senhor mais gosta?
Antonio Candido – Não, mas acho que é o que mais se
aproveita.
Brasil de Fato – E de qual o senhor mais gosta?
Antonio Candido – Gosto muito do Eça de Queiroz,
muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos… Acho que
já li “São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano
muito, sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler
com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o
Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor
universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro,
ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque
não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua
grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se
dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.
Brasil de Fato – Como levar a grande literatura
para quem não está habituado com a leitura?
Antonio Candido – É perfeitamente possível, sobretudo
Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi
feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já
avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram:
cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles
pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é
um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou
capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte
inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro
de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O doutor
Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito tempo no
Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem
que saber explicar, usar a linguagem normal.
Brasil de Fato – O senhor acha que o brasileiro
gosta de ler?
Antonio Candido – Não sei. O Brasil pra mim é um
mistério. Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma
reportagem que dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em
todo o Brasil. Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o
finlandês, que lê 30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?
Brasil de Fato – O senhor acha que vai?
Antonio Candido – Não sei. Eu não tenho nem
computador… as pessoas me perguntam: qual é o seu… como chama?
Brasil de Fato – E-mail?
Antonio Candido – Isso! Olha, eu parei no telefone e
máquina de escrever. Não entendo dessas coisas… Estou afastado de todas as
novidades há cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um
velho caturra. Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que
tem aqui é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu
dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que
posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira
está fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito
dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos
Estados Unidos… que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me
interesso por novidades.
Brasil de Fato – E o que o senhor lê hoje em dia?
Antonio Candido – Eu releio. História, um pouco de
política… mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo
reler alguns mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os
comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um
defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu
da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma
finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível
chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai
no inferno.
Brasil de Fato – O senhor é socialista?
Antonio Candido – Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu
acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é
paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram
juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no
começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de
madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a
aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o
homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não
pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar,
para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que
doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida
não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para
as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu,
que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o
capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O
capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx
definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital
precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as
necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda
descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar
descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a
meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está
baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o
socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário
trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo
só não deu certo na Rússia.
Brasil de Fato – Por quê?
Antonio Candido – Virou capitalismo. A revolução
russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao
poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.
Brasil de Fato – O socialismo como luta dos
trabalhadores?
Antonio Candido – O socialismo como caminho para a
igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi
obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os
países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do
trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que
países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor
para o trabalhador.
Brasil de Fato – Para o senhor é possível o
socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?
Antonio Candido – Estou pensando mais na técnica de
esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do
maior ao menor salário, se todos tiverem escola… não importa que seja com a
monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo!
Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações
estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como
resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a
distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a
produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se
suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição
econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de
alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode
resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida.
Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a
gente não sabe o que vai ser… o que é o socialismo? É o máximo de igualdade
econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São
Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um
trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de
enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o
socialismo.
Brasil de Fato – O que o socialismo conseguiu no
mundo de avanços?
Antonio Candido – O socialismo é o cavalo de Troia
dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o
socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do
socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não
a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o
socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da
moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era
militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito –
era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema
esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a
média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não
foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a
religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz
isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está
embebido de socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de
esquerda – começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por
dizer que no Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou
falando em metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem
que a miséria é intolerável. O socialismo está andando… não com o nome, mas
aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade
que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é
impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar
mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima,
não máxima. Sou muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma
certa tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão – e isso é
bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas
Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim,
todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi
sendo dividida entre os filhos… então na minha cidade o barbeiro era meu
parente, o chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma
moça deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual
a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10
anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci
inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o senhor.
Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho temperamento
conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes liberais e ideias
socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em família nem importante
nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).
Brasil de Fato – A Teresina, que inspirou um livro
com seu nome, o senhor conheceu depois?
Antonio Candido – Conheci em Poços de Caldas… essa
era uma mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho
um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito
tarde, com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser
fascista do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele
dizia com razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.
Brasil de Fato – E o dever da atual geração?
Antonio Candido – Ter saudade. Vocês pegaram um rabo
de foguete danado.
Brasil de Fato – No seu livro “Os parceiros do Rio
Bonito” o senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por
motivos econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Antonio Candido – Isso é uma coisa muito bonita do
MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era
mais econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha
na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no
caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento,
informação, notícia… Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o
camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em
1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um
informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais
de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o
imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra
ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está
fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe
escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande
parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O
problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A
televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e
assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por
causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx
não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar
de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos,
do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de
whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro
que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando
necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga,
miséria… Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo
descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e
fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a
comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não
vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e
disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial
não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial
não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo.
E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um
regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não
falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da
renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar.
Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não
é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de
Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de
Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no
curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de
Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza,
colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado
por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os
Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura
na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria
literária e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou
trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido
Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos
fundadores do Partido dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e
Diário de São Paulo, resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros,
atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha,
Ana Luisa Escorel.
* Fonte: Fundação Lauro Campo, disponível
emhttp://socialismo.org.br/portal/filosofia/154-entrevista/2147-qo-socialismo-e-uma-doutrina-triunfanteq
[Publicado originalmente na
edição 435 do Brasil de Fato.]
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