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Sávio Ximenes Hackradt

14.8.12


Apesar do pacote de medidas anticíclicas implementado pelo governo federal buscando reverter a forte desaceleração da atividade industrial no país, o Brasil continua flertando com a estagnação econômica.

Por Ruy Braga.*

De acordo com os analistas mais prudentes, teremos algo entre 1,5% e 2% de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) este ano. Após o medíocre resultado de 2,7% de crescimento alcançado ano passado, 2012 seguramente será bem pior e as autoridades governamentais começam a afirmar que a retomada virá apenas a partir do próximo ano… Ou seja, a despeito da tese do “desacoplamento” do Brasil em relação às economias centrais, tese bastante duvidosa após sucessivas décadas de mundialização capitalista, o cenário atual demonstra que o fantasma da crise econômica mundial aportou com força no país. No entanto, não são poucos aqueles que continuam apostando na capacidade do governo de evitar que, em ano eleitoral, a atual desaceleração econômica transforme-se em uma ameaça ao projeto de poder lulista.

Afinal, apesar do fraco desempenho da economia, o mercado de trabalho tem se mantido aquecido e a desconcentração de renda na base da pirâmide salarial não parece dar sinais de reversão… Evidentemente, há algo de verdadeiro nessa constatação. Malgrado os planos de demissão voluntária (PDVs) já anunciados por algumas montadoras, de uma maneira geral, até o momento, as empresas não estão demitindo. Isto alimenta uma sensação de que o buraco não é tão profundo e a economia vai se recuperar em breve, desanuviando o céu sobre o Palácio do Planalto. Aparentemente, esta esperança esquece-se convenientemente de uma velha lição do marxismo crítico que floresceu na América Latina entre as décadas de 1950 e 1960: em países outrora colonizados e depois subdesenvolvidos, as modernas relações de produção capitalistas são dominadas pelo atraso, tendendo a reproduzir as bases materiais da produção massificada do trabalho barato.


Após tanta mistificação em torno da chamada “nova classe média”, muitos se esqueceram de que se olharmos por trás da relativa desconcentração de renda entre os que vivem do trabalho encontraremos a dura realidade de uma sociedade periférica cuja economia depende estruturalmente do preço anomalamente baixo da força de trabalho. Em suma, os trabalhadores brasileiros tornaram-se reféns de um modelo de desenvolvimento capitalista cuja estrutura alimenta-se de condições cada dia mais precárias de vida e de trabalho. Se a gênese desse modelo remonta ao início dos anos 1990, quando as políticas de ajuste estrutural implementadas pelos governos Collor e FHC elevaram a taxa de desemprego aberto de 3% para 9,6% da População Economicamente Ativa (PEA), nocauteando a massa salarial (bastaria lembrar que, de 1995 a 2004, a participação dos salários na renda nacional caiu 9% enquanto as rendas de propriedade aumentam 12,3%), sua consolidação foi obra dos governos de Lula da Silva.

À primeira vista, a ênfase social do modelo de desenvolvimento pilotado pela burocracia lulista anunciaria uma alternativa. Afinal, houve uma intensa reformalização do mercado de trabalho durante a década passada que, somada a um crescimento econômico da ordem de 4% ao ano, redundou em uma incorporação média de aproximadamente 2,1 milhões de novos trabalhadores por ano ao mercado formal. A base da pirâmide salarial aumentou nitidamente, fortalecendo o mercado de trabalho brasileiro: entre 2004 e 2010, a participação relativa dos salários na renda nacional aumentou 10%, enquanto os rendimentos oriundos da propriedade decresceu cerca de 13%. No entanto, destes 2,1 milhões de novos postos de trabalho criados por ano, cerca de 2 milhões remuneram o trabalhador em até 1,5 salário mínimo. Eis o segredo de polichinelo: crescimento apoiado em trabalho barato.

Dispensável dizer que estes trabalhadores simplesmente não são capazes de poupar. Ou seja, todo o dinheiro que entrou na base da pirâmide salarial na última década foi imediatamente convertido em consumo popular. E o aumento desse tipo de consumo combinou-se com o barateamento das mercadorias proporcionado pelo aprofundamento da mundialização capitalista. Um novo padrão de consumo emergiu no país: pós-fordista, pois baseado na capacidade do regime de acumulação mundializado em multiplicar a oferta de novos bens; popular, pois apoiado no crescente endividamento das famílias trabalhadoras que precisam fazer das tripas coração para pagar as incontáveis prestações do comércio varejista.

Ocorre que este novo padrão de consumo repousa não sobre os ganhos de produtividade proporcionados pelo desenvolvimento da indústria nacional, mas, sobretudo, sobre os ganhos de escala garantidos por alguns setores estratégicos: mineração, petróleo, agro-indústria e construção civil. E esses motores econômicos não são conhecidos por contratar predominantemente força de trabalho complexa: ao contrário, eles empregam largamente força de trabalho não-qualificada. Como consequência, a base da pirâmide alarga, mas remunera muito mal. A economia cresceu às custas da deterioração da indústria de transformação, a única capaz de garantir ganhos reais de produtividade. Ou seja, as relações de produção capitalistas representadas por uma moderna indústria financeira, pelo complexo processo de exploração do pré-sal e pelo desenho pós-moderno dos novos estádios da Copa do Mundo, apenas reproduzem as bases materiais da produção massificada do trabalho barato. Até quando?

*Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003).

Fonte: Boitempo, publicado originalmente na Revista Sociologia Ciência & Vida.

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