13.8.12
Postado por
Sávio Hackradt
Senhor de todos os respeitos, não o amavam, mas temiam seu
mistério. Ali chegara trinta anos passados, com grossos contos de réis, a
mulher cabisbaixa e o fordinho que, ao entrar no povoado, exigira turma de
enxadeiros para arrumar a légua-e-meia de caminho ruim.
Chegara com carta de recomendação ao major Cerqueira,
filho do finado coronel do mesmo nome, e por isso portador de patente menor, já
que a Guarda Nacional fora extinta, mas ainda prevaleciam as honras da família.
O major Cerqueira vendeu-lhe, pelo dobro do que valia, uma data de terras de
capoeira nanica e brejo duro. Isso não o esmorecera; com dinheiro tudo se
ajeita, e dinheiro ele tinha.
Conversando pouco, contratava seus camaradas ao preço do
mercado, mas oferecia compensações secretas: mais pêlo de carne no caldeirão,
litro-e-meio de cachaça aos sábados e remédios para doencinha rasteira, como
desarranjo e defluxo. No armário da varanda (camarada seu não entrava da
varanda pra dentro) guardava sal-de-glauber, sena, maná, magnésia e elixir
paregórico, que dosava criteriosamente.
Nos trinta anos engrossou fortuna, mas não pôde prosperar
família. A mulher era de barriga miúda, comentava-se, de boca a ouvido, porque,
fora das paredes, ninguém sabia do que se passava entre os dois. Nunca lhe
haviam visto os dentes, e, de sua boca, à parte os cumprimentos secos, só se
ouviam palavras de precisão. Aquelas que davam ordens, e aquelas que tratavam
de negócios. Na cidade, mesmo, seus assuntos eram poucos: comerciava com gente
de fora, que lhe vinha comprar garrotes e novilhas de raça, especialista que
era em melhorar o sangue de nelores uberabenses. Dizia-se (ninguém provara) que
seu segredo era o incesto entre os bichos.
Levantou-se naquela quinta-feira como de seu costume, às
cinco, e foi chamar o vaqueiro, mas não o encontrou no curral. Não carecia de
procurar a mulher, mortíssima havia meses já – mas foi até o quarto da
cozinheira, que tampouco estava. “Ó gente, que passa aqui, que não tem
ninguém?” – resmungou. Saiu um pouco. Da varanda via o povoado todo, com suas
vinte e oito casas. Era verão alto, e o sol brilhava. Não viu vulto que fosse.
Às seis chegariam seus camaradas, e o vaqueiro e a cozinheira (ele já
desconfiava) deviam estar pelo retirinho, mais no seguro, acordando de
safadezas. Esperaria.
As sete, pela primeira vez na vida, ele mesmo coou café
forte, cortou uma fatia de queijo e resolveu chegar ao arraial. O arraial
também estava vazio. Deu-lhe então o sério pressentimento de que o haviam
achado. Voltou apressado para casa, o coração socando o peito, à espera de uma
bala nas costas – mas, nada. Só havia o silêncio. Ao chegar ouviu mugidos
horríveis no estábulo. Seu reprodutor de duzentos contos, estava peado e
castrado. As outras reses agonizavam devagar, meio sangradas pelo pescoço. Eram
eles. Entrou, e viu que não tinha uma só arma em casa. Mas não iria pedir
misericórdia. Já sabia o que ocorrera: saídos da cadeia, os três se juntaram
para vir atrás dele, que nunca cumprira nada do prometido – nem mesmo olhar pela
mulher do Santos, que estava grávida, nem mesmo pagar a operação do pai de
Durvalino. Tinham esvaziado o arraial, indo de casa em casa durante a noite – e
como ninguém ali o estimava, fora fácil mandar todos para assistir, dos altos,
ao seu fim. Queriam matá-lo de medo. Era o que ele faria se estivesse no lugar
deles – e um deles estivesse em seu lugar. Mas estavam lidando com lacrau. De
medo, não. De bala sim, ou , quem sabe, talvez. Foi para a varanda, sentou-se
na cadeira alta, tirou a camisa e ofereceu o peito magro como alvo. Mas não
houve tiro. Ouviu barulhos no fundo, não se moveu. Com fome, o sol a pino,
levantou-se devagar, foi à cozinha, cortou um pedaço de charque, chamuscou-o no
borralho, comeu. Tirou, com a cuia, água do pote e levou-a à boca: estava
amarga, purgativa. Não bebeu. Ao meio dia os passarinhos sempre cantavam, e
estavam mudos. Haviam posto arsênico no alpiste.
Voltou para o cadeirão da varanda e, pela primeira vez a
paisagem ouvia sua gargalhada: “apareçam, se são homens. Venham, seus frouxos.”
Calou-se, ao sentir a velha e companheira dor no peito. Mas não enfiou a mão no
bolsinho da camisa para apanhar o comprimido. Levantou-se da cadeira, sentou-se
na rede, gritou:
- Já que vocês não chegam, vou tirar uma soneca. Quem sabe
arranjam coragem?
Respirou fundo, deu uma banana para a paisagem quieta,
recostou-se, e agüentou, prazeroso, a dor da angina. Quando, finalmente,
rastejaram até a varanda, ele ria de olhos fechados, e dois dedos, o polegar e
o indicador, se juntavam, hirtos, no gesto obsceno.
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