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Sávio Ximenes Hackradt

8.3.11


Ao pensar o futuro da ciência no Brasil, boa parte dos pesquisadores brasileiros volta os olhos, automaticamente, sem pestanejar, para Estados Unidos, Europa e Ásia. Miguel Nicolelis, um dos mais respeitados neurocientistas do mundo, mira em outro alvo.
Por Conceição Lemes, para o Viomundo
Professor e pesquisador na Universidade Duke, Nicolelis é apaixonado pelo Brasil e nosso povo. Membro das academias Brasileira, Francesa e do Vaticano de Ciências, ganhador de 38 prêmios internacionais, entre os quais dois dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, ele vive na “ponte aérea” Durham, Carolina do Norte – Macaíba, Rio Grande do Norte, onde implantou o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lilly Safra (IINN-ELS).
É uma infatigável usina de propostas inovadoras, que funciona a mil por hora. Tanto que, em 23 de novembro de 2010, divulgou aqui, em primeira mão, o “Manifesto da Ciência Tropical: Uso democrático da ciência para transformação social e econômica do Brasil”.
Agora, três meses depois, se lança a mais este desafio: a Comissão do Futuro da Ciência Brasileira, anunciada na quinta-feira (3), em meio a uma porção de crianças do bairro Cidade Esperança, periferia de Natal, numa escola de educação científica para alunos do IINN-ELS. Escola que nasceu justamente com a proposta de descentralizar a produção da ciência brasileira.
“O objetivo é fazer um diagnóstico profundo do estado atual da ciência brasileira, recomendar soluções para seus problemas e propor um plano estratégico para os próximos 10 anos”, afirma Nicolelis, que foi convidado pelo ministro da Ciência e Tecnologia (MCT), Aloizio Mercadante, para criar a comissão e presidi-la. “Esperamos que a ciência brasileira dê um salto qualitativo que lhe possibilite ser protagonista no cenário científico mundial e possa contribuir com a sociedade.”
“A comissão será independente, e os seus membros trabalharão voluntariamente”, frisa. “A escolha dos membros foi feita exclusivamente por mim.”

A Comissão do Futuro da Ciência Brasileira será composta por:
Presidente: Miguel A. L. Nicolelis, Duke University e ELS-IINN
Membros efetivos
- Alan Rudolph, Biólogo, International Neuroscience Foundation, EUA
- Alexander Triebnigg, Médico, Presidente da Novartis, Brasil
- Conceição Lemes, Jornalista, Brasil
- Débora Calheiros, Pesquisadora, EMBRAPA, Brasil
- Jon H. Kaas, Neurocientista, Vanderbilt University, US National Academy of Science, EUA
- Luiz A. Baccalá, Engenheiro, Escola Politécnica, USP, Brasil
- Luiz Gonzaga Belluzzo, Economista, Professor Emérito UNICAMP, Brasil
- Mariano Sigman, Neurocientista, Universidade de Buenos Aires, Argentina
- Marilena Chauí, Filósofa e Professora, USP, Brasil
- Mariluce Moura, Jornalista, FAPESP, Brasil
- Mauro Copelli, Físico, UFPE, Brasil
- Patrick Aebischer, Neurocientista, Presidente da École Polytechnique Fédérale de Lausanne, Suíça
- Ricardo Abramovay, Cientista Político, FEA-USP, Brasil
- Robert Bishop, Cientista Computacional, ex-CEO da Silicon Graphics, EUA
- Ronald Cicurel, Matemático e Filósofo, Suíça
- Selma Jeronimo, Médica-pesquisadora, UFRN, Brasil
- Stevens Rehens, Biólogo, UFRJ, Brasil
- Thereza Brino, Educadora em Tecnologia da Informação, Brasil
- Victor Nussenzweig, Médico, New York University, Brasil/EUA
- William Feiereisen, Cientista Computacional, Intel, EUA

Viomundo – De quem foi a ideia da comissão?
Miguel Nicolelis – Do próprio ministro. Comissões internacionais são um mecanismo muito usado fora do Brasil. Aqui, vamos utilizá-la pela primeira vez para avaliar o estado atual da ciência brasileira, seus processos, mecanismos de fomento, estrutura dos institutos e órgãos de produção científica. O objetivo é fazer um profundo diagnóstico da situação, recomendar soluções e propor um plano estratégico para os próximos dez anos.
Viomundo – Quais os resultados lá fora?
Miguel Nicolelis ­– A experiência é sempre muito boa, pois são comissões independentes. Comissões de cientistas já foram utilizadas para avaliar o desastre da Challenger, outros grandes eventos, programas nacionais de ciência. Nesse sentido, é importante ressaltar que tive total liberdade de convidar tanto nomes nacionais quanto estrangeiros de uma grande gama de áreas.
Viomundo – De pronto, que problemas o senhor destacaria?
Miguel Nicolelis ­– De vários níveis. Desde as dificuldades dos processos para financiamento, os obstáculos para o jovem cientista entrar no sistema, importação de suprimentos e equipamentos até a forma como é feito o ranking dos cientistas no Brasil – uma situação esdrúxula, única no mundo.
No Brasil, há também dissociação do processo científico da sociedade. A ciência brasileira penetra muito pouco no dia a dia da população. São aspectos sociais que teremos de avaliar. Qual a missão da ciência no Brasil? Como incentivar o jovem pesquisador? Como estimular a educação cientifica na vida brasileira desde a infância? O que fazer para incentivar uma ciência que contribua para o desenvolvimento econômico e social do país?
Viomundo ­– O senhor diz que o ranking dos cientistas no Brasil é feito de uma forma esdrúxula. Por quê?
Miguel Nicolelis ­– Aqui, a ênfase é na produção numérica. Ou seja, na quantidade e não na qualidade. Em países desenvolvidos, por exemplo, nos Estados unidos, isso não existe.
Viomundo – Quais as consequências do nosso tipo de ranking?
Miguel Nicolelis ­– Esse ranking decide, por exemplo, quem vai participar dos comitês de decisão, dos órgãos de consultoria do CNPq. Ele gera um círculo vicioso. De tal sorte que é muito difícil virar um pesquisador 1A. E, aí, o problema. Só pesquisadores 1A decidem para onde vai o dinheiro. Só os pesquisadores 1A podem ser diretores dos Institutos Nacionais de Ciência. Consequentemente, um jovem brilhante, que poderia contribuir muito para o desenvolvimento da ciência, fica alijado do processo.
Viomundo – Por favor, traduza para os leitores o que é o pesquisador 1A.
Miguel Nicolelis ­– Teoricamente eles seriam os pesquisadores mais experimentados, a elite da ciência brasileira. Só que, na realidade, isso não é necessariamente correto, porque os critérios para alguém chegar a pesquisador 1A são quantitativos – número de trabalhos, de alunos orientados. Na realidade, não há uma correlação direta entre excelência científica e o fato de ser pesquisador 1A. Muito pelo contrário. Criou-se no Brasil uma indústria de publicar sem levar em consideração a qualidade do que está sendo publicado. O número – de trabalhos, de orientandos, etc.–, decide a situação. Assim, pode-se ter um jovem pesquisador brilhante, com poucos orientandos, mas que publica um trabalho de grande peso na ciência mundial. Só que esse menino não pode ter os benefícios que o cientista 1A tem.
Viomundo – Essa é uma questão crucial?
Miguel Nicolelis ­– É uma questão-chave, porque é uma hierarquia que não traz beneficio algum. No Brasil, Albert Einstein nunca seria pesquisador 1A, porque escreveu um número muito pequeno de trabalhos. Só que os poucos trabalhos dele foram geniais e revolucionaram o mundo. Assim como Einstein, outros grandes cientistas mundiais não chegariam a pesquisador 1A. E isso não existe nos Estados Unidos, na Alemanha.
Viomundo ­– É invenção brasileira?
Miguel Nicolelis ­– Acho que sim, mas não tenho certeza. A minha sensação é a de que foi uma forma de reinstituir o sistema de cátedras que foram abolidas. É uma hipótese. O fato é que criou uma elite, que determina coisas muito importantes, inclusive quem vai receber financiamento para pesquisas, que acaba prejudicando os jovens cientistas. Ao mesmo tempo, existem gastos muito absurdos. A revisão de projetos científicos, por exemplo, custam uma fortuna no Brasil. Os pesquisadores vão para Brasília, ficam dez dias revisando um projeto! Enquanto nos EUA, onde eu participo desses comitês, gastamos um dia para revisar, no máximo, dois. E hoje em dia a maioria é feita pela internet. Assim, você economiza dinheiro para financiar pesquisas.
Viomundo – E os mecanismos de incentivo ao jovem cientista?
Miguel Nicolelis ­– São muito poucos. O Brasil não investe nos jovens, privilegia os cientistas mais estabelecidos, aqueles que estão há décadas na carreira. Enquanto no restante do mundo o incentivo é para o cientista que está começando a carreira, pois o futuro está nos jovens. No Brasil, existe uma renovação muito pequena das lideranças científicas. Existe uma casta. Esse é um debate muito interessante, que vai poder ser feito numa comissão como a nossa.
Viomundo ­– Como vai atuar a comissão?
Miguel Nicolelis ­– O grupo brasileiro vai se reunir quatro vezes por ano, para debater as grandes questões. E duas vezes por ano essas reuniões vão ter a participação dos estrangeiros. Teremos, portanto, seis reuniões no primeiro ano. Nós vamos produzir um documento com diagnósticos e sugestões que possam guiar o desenvolvimento de políticas públicas de ciência no Brasil pela primeira vez. O tempo de atuação da comissão ainda não está definido. Mas, inicialmente, será por um ano.
Viomundo ­– A comissão vai ouvir os cientistas brasileiros?
Miguel Nicolelis ­– A nossa intenção é ouvir todos os segmentos da sociedade brasileira ligados à ciência: entidades científicas, todas as entidades de classe, estudantes de graduação, pós-graduação, doutores e cientistas. Vamos ouvir também a sociedade em geral. Para isso, vamos usar as redes sociais, para que as pessoas comuns participem dos trabalhos da comissão, mantendo sugestões, perguntas. Vamos ter um site, Twitter, Facebook, enfim todas as ferramentas da internet que permitem a interlocução mais ampla. Nós estamos inovando também com a presença na comissão de duas jornalistas das áreas de ciência e medicina, que vão nos permitir uma interlocução com a sociedade.
Viomundo ­– Nas comissões científicas, aliás, normalmente só tem pesquisadores consagrados de ciências exatas e naturais. A Comissão do Futuro da Ciência Brasileira abriu bastante esse leque.
Miguel Nicolelis – Realmente, do lado brasileiro, a nossa comissão tentou aumentar dramaticamente a presença de cientistas jovens, alguns no início da carreira, mas que já têm claro potencial de que se transformarão em líderes no futuro. Além disso, um grande número de áreas está representado na comissão: ciências exatas, naturais, ambientais, filósofos, matemáticos, economistas, educadores. Ou seja, nós procuramos aumentar o máximo possível o leque para poder oferecer um diagnóstico e uma sugestão de uma visão científica mais ligada à sociedade civil.
Viomundo – No começo da entrevista, o senhor disse que a ciência brasileira não tem interlocução com a sociedade. O que quer dizer com isso?
Miguel Nicolelis – Várias coisas. A ciência brasileira ainda não é feita por todos os segmentos da nossa sociedade. Não são todos os segmentos da sociedade brasileira que têm acesso à universidade e à carreira acadêmica. A disseminação do conhecimento científico não é homogênea nem no território nem na população. Os meios de produção do conhecimento científico também não estão distribuídos democraticamente. Evidentemente, do ponto de vista social, isso leva a uma restrição dessa representatividade. Ao mesmo tempo, as benesses da ciência brasileira não alcançam homogeneamente todos os lugares do Brasil. Há concentração muito grande de produção científica na região Sudeste. Logo, é patente que os benefícios de investimentos federais, geração de patentes e de produtos científicos também se concentrem nesses estados. Já o restante do Brasil não se beneficia dessa produção de conhecimento de ponta. São aspectos novos no debate da ciência brasileira, que começaram a aparecer há menos de uma década. Aliás, há alguns anos, não tenho a menor dúvida de que o anúncio da Comissão do Futuro da Ciência Brasileira seria feito na cidade de São Paulo, provavelmente na USP. Nessa medida, é muito emblemático que tenhamos feito esse anúncio cercado por crianças que estão dando o primeiro passo na educação científica numa escola do bairro Cidade Esperança, nome quase poético, na periferia de Natal.

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